Artigo | Notícia

Lugares de memória (II): a reparação civil

Memória coletiva é ferramenta essencial para preservar a verdade histórica e ter seus lugares referenciados. Memória e reparação civil caminham juntas

Por JONES FIGUEIRÊDO ALVES Publicado em 13/10/2025 às 6:08

Clique aqui e escute a matéria

Quando a Guerra de Canudos (11-1896/10-1897), dizimou o arraial liderado pelo beato e místico rebelde Antônio Vicente Mendes Maciel (1830-1897) conhecido por “Antônio Conselheiro”, com o massacre pelas tropas do governo Prudente de Moraes provocando a destruição da comunidade religiosa e morte da quase totalidade dos seus 25 mil habitantes, as memórias trágicas permanecem.

Depois disso, o antigo arraial criado em 1893, como distrito de Monte Santo (BA), denominado “Belo Monte”, no noroeste baiano, foi submerso pelo açude de Cocorobó (1950) e uma outra cidade de Canudos erguida ao lado da represa.

Agora, uma ação judicial foi iniciada por descendentes dos antigos conselheiristas, seguidores do líder espiritual cearense, onde a memória das vítimas da guerra e uma reparação civil buscam, juntas, resgatar a história, inclusive com a construção de uma réplica da antiga Canudos. Para além da indenização, políticas públicas de preservação da memória da histórica tragédia (com a criação de museus), programas educacionais sobre os eventos do arraial e da luta dos antepassados, são exigidos na ação proposta.

Um dos autores da ação, Edmilson Ferreira, é bisneto de um dos mais destacados conselheiristas e sobrevivente do massacre, Pedro Calixto de Oliveira (1869/1958), nela defendendo a criação de memorial dos mártires de Canudos, homenageando os seus protagonistas.

Quando milhares de pessoas foram prejudicadas em 25.01.2019, pelo rompimento de barragem de rejeitos da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG), causando 272 mortes, a contaminação de mais de 300 quilômetros do Rio Paraopeba e afetando a população de 26 cidades, os lugares de memória também foram igualmente sacrificados. Foi a maior tragédia humanitária do país.

O direito à existência e o direito de viver implicam que as violações ilícitas, na esfera civil, sancionam, “mais particularmente, a reparação do dano à vida do próprio ofendido pelo fato danoso”.

É, assim, o dano-morte (“pretium mortis”) configurado pelo fato ilícito e típico da morte, que iniludivelmente difere dos danos reflexos sofridos pelos familiares das vítimas fatais. Um significativo exemplo situa-se no julgamento de 20.06.2023, quando a 3ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) “reconheceu à unanimidade a obrigação de a Vale S.A. pagar indenização por dano-morte em favor de cada um dos 131 trabalhadores mortos na tragédia de Brumadinho (MG), mantendo o arbitramento feito pela instância inferior em R$ 1 milhão por vítima”. O dano morte considerado com um dano próprio e autônomo.

Para a 3ª Turma, o dano-morte tem que ser reconhecido porque deveria haver o mesmo tratamento dos casos em que se dá indenização para trabalhador que morre em decorrência de acidente de trabalho. Segundo o entendimento da turma, essa indenização não se confunde com danos morais pelo sofrimento da família.

No caso de Brumadinho, ações judiciais estão em curso, tendo sido proposta também uma ação Civil Pública (14.03.2025), com pedido de criação de um novo auxílio emergencial para as pessoas atingidas pelo rompimento da barragem, em pagamento do Programa de Transferência de Renda (PTR), a vencer este mês. Agora, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais define no próximo dia 22 de outubro, em julgamento de Conflito de Competência a turma julgadora para análise do auxílio para a população atingida da Bacia do Paraopeba e Represa de Três Marias. As populações atingidas perderam seus referenciais de origem dos seus lugares.

A tragédia de Mariana, que completa dez anos, no dia 5 de novembro vindouro, com 19 mortos e as devidas semelhanças entre o rompimento das duas barragens de Minas Gerais, significou também a perda dos lugares de memória dos habitantes. O rompimento da barragem do Fundão, controlada pela empresa Samarco Mineração S.A., dizimou inteiramente o subdistrito de Bento Rodrigues, a 35 kms. do centro, com notáveis danos aos ecossistemas e à infraestrutura de Mariana.

Importante acentuar que cerca de 126 famílias do povo indígena Krenak, que viviam em suas sete aldeias, às margens da foz do Rio Doce, com as terras improdutivas pela lama dos rejeitos, tornam-se dependentes estatais, com reparações financeiras continuadas. Ação judicial contra a Samarco tramita atualmente em Londres.

Noutro giro, o afundamento do solo de Maceió, em um processo geológico do solo em vários bairros da cidade, causado pela exploração inadequada e consequente colapso das minas de sal-gema da mineradora brasileira Braskem, provocou que cerca de 60 mil pessoas abandonassem os locais de moradia e suas propriedades. Perdas expressivas de seus lugares de memória. Uma ação judicial contra a Braskem tramita no Tribunal Distrital de Roterdã, na Holanda, discutindo o valor justo das indenizações, em cobertura de todos os danos, para a adequada reparação civil. O tribunal decidiu que tem competência para julgar o caso e admitiu a ação contra a petroquímica.

No caso do massacre de Canudos, a ação judicial subscrita pelos advogados Paulo Menezes e Claudiane Reis, o classifica como um genocídio, e destaca, com pertinência, que “os crimes são imprescritíveis e que os efeitos dos danos causados pelo conflito são contínuos, atingindo sucessivas gerações de moradores”. Iniludível que sim.

A memória coletiva é uma ferramenta essencial para preservar a verdade histórica e ter seus lugares referenciados. Daí, memória e reparação civil caminham e dialogam juntas, no rigor da apuração/revisitação dos fatos e de suas consequências danosas, especialmente quanto aos seus lugares de origem.

Jones Figueirêdo Alves é Desembargador Emérito do TJPE. Advogado e parecerista

Compartilhe

Tags