Editorial JC: O Brasil que dorme na rua
Situação de rua aflige 350 mil brasileiros, de acordo com os dados oficiais – mais que o dobro anotado há seis anos, apesar de avanços sociais

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A insegurança alimentar vem diminuindo no país, que até saiu do mapa da fome, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). Outros indicadores refletem conquistas sociais alcançadas nos últimos anos, como o Bolsa Família distribuído em larga escala.
Mas a desigualdade no Brasil continua alta. E um dado desafiador é o número de pessoas em situação de rua, que vem aumentando: eram 144 mil em 2019, e passaram a 350 mil em 2025, segundo o CadÚnico do governo federal. A informação contrasta com o contexto de melhoria das condições de vida, só que a realidade não se desmente. Mesmo com a constatação de melhoras, a dimensão da desigualdade é tamanha que o crescimento da população de rua não surpreende.
E isso não tem apenas uma causa política ou econômica. A conjuntura favorece ou desfavorece os programas contra a desigualdade, planejados e tocados pelos governos nas três esferas administrativas – nos planos federal, estadual e municipal.
A economia pode ir bem, por exemplo, na recuperação dos empregos, sem que arranjos estruturais promovam a geração de trabalho para habitantes de áreas vulnerabilizadas pela pobreza ou pela miséria. A fome pode estar menos aguda em partes do território nacional, enquanto noutras partes a falta de refeições regulares continua no cotidiano de muita gente. Especialmente no caso da situação de rua.
Em depoimento ao jornal O Globo, o sociólogo Marco Natalino, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), chama atenção para uma demanda não atendida pelos programas sociais, de modo geral, na maioria das cidades brasileiras: a quantidade de abrigos, albergues e centros de apoio à população em situação de rua não se expandiu na proporção de outros benefícios sociais. Sem políticas inclusivas focadas no problema, o problema aumenta, na contramão da melhoria da qualidade de vida em comunidades de alguma forma atendidas em outros aspectos.
Mais da metade dos municípios no país apresentam pessoas vivendo nas ruas, de acordo com o governo federal. A remoção forçada é proibida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2023. Também não é permitida a colocação de pinos e outros obstáculos nas calçadas para afastar a população de rua.
A responsabilidade da autoridade governamental começa pelas prefeituras, passa pelos governos estaduais e continua até o Planalto, sem deixar de abranger as três esferas dos poderes Legislativo e Judiciário. A prevenção à situação de rua envolve a oferta de múltiplos apoios e benefícios para quem não tem quase nada para viver com dignidade.
A integração de políticas públicas para enfrentar a questão com a persistência do compromisso e a paciência da sensibilidade social, depende da disponibilidade e do interesse dos representantes do povo, das instituições, e também da sociedade. A indiferença diante das pessoas na rua leva à deterioração da vida na rua. No caso do poder público, indiferença é omissão, com repercussões que aprofundam a desigualdade.