Tá difícil (senão impossível) conversar
Partindo dessa premissa, o que trago ao leitor é uma reflexão de algo que talvez, quem sabe, seja reversível. Uma montanha a ser movida

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No best seller “A menina que roubava livros” (2005), o autor Markus Zusak, tendo como narradora a Morte, conta da garota Liesel, em 1939, na Alemanha nazista. Com uma infância sofrida, Liesel se refugia nos livros. Passa então a furtá-los. Em dada passagem da obra, se diz: “As palavras sempre ficam. Lembre-se sempre do poder das palavras. Quem escreve constrói um castelo, e quem lê passa a habitá-lo”.
Partindo dessa premissa, o que trago ao leitor é uma reflexão de algo que talvez, quem sabe, seja reversível. Uma montanha a ser movida. O impulso (quase sádico) de aniquilação do outro, a partir do seu “cancelamento”, como forma de granjear satisfação pessoal e a admiração na própria bolha (ou câmara de eco), ou seja, como ferramenta para “lacrar”.
Será que o mundo está chato como sustentam certas vozes ou será que nos achamos às turras com um desafio imenso às ciências sociais, uma cultura que nos está tornando quase irreconhecíveis aos próprios olhos?
A lacração (ou discurso lacrador) nas redes sociais tenciona fazer o indivíduo se sair bem de certa situação como se tal realização fosse o sucesso absoluto que não mais vai poder ser questionado. Nela, frases de efeito são propagadas e substituem o exercício ponderado do pensar. Degrada-se o senso crítico.
Ambos os fenômenos (cancelamento e lacração) são bem percebidos no debate político contemporâneo. Que o digam as CPI’s e audiências públicas nos últimos anos. Dá-se a impressão de que mais se destaca quem mais grita ao ponto das veias saltadas no pescoço. Discutir o País para que? Não borbulha a adrenalina.
O receituário é até cansativo. Nas redes sociais, achando que faz uso da liberdade de expressão, escondido ou não atrás da tela do PC ou smartphone, o indivíduo dispara conteúdos que transbordam da legítima indignação, e, com isso, estimula outros a seguirem-no.
Desde o movimento #MeToo, que denunciou o assédio sexual sofrido por mulheres na indústria cinematográfica norte-americana, assunto grave, por décadas naturalizado, passando pela pandemia da COVID e pela reação a artistas e marcas que apoiavam a desnecessidade de isolamentos e lockdowns, a carga de casos do “Tribunal da Internet” nos quais a indignação levou a consequências para além das jurídicas está sempre em alta.
O problema mais complexo se revela na medida em que os alvos dos cancelamentos deixam de ter direitos que são básicos de todas as pessoas. Entre eles, o de defesa. É a hora em que a condição de culpado se convola em instantânea, pouco importa a palavra do Judiciário, o que contraria o artigo 5º, inciso LVII, da Constituição brasileira. Ou seja: é preciso enxergar que tem algo de muito errado na fita ou que muito errado se tornou em algum ponto, por mais que se acredite que se esteja a agir corretamente.
Sobreleva nisso um comportamento traiçoeiro, que suprime a oportunidade de um espaço para o outro se posicionar e radicaliza a ideia de lacração. Não somente basta silenciar. É preciso reduzir o adversário a cinzas. A exposição interminável nas redes sociais, em efeito manada, só vale se “detonar” o objeto da raiva, mesmo que isso respingue em inocentes. Só compensa se a intimidação gera o terror, se causa o exílio, a desgraça, o banimento. Se mata a dignidade. Somente aí faz sentido a ideia de punição. Não, não pode. É hora de puxar o freio de mão desse bonde. Claramente, ele dispara ladeira abaixo sem maquinista.
Quando o aparentemente democrático se torna o essencialmente autoritário é necessário repensar. Quando a indignação exorbita e ataca o psicológico, o emocional, quando transpõe o conceito de culpa jurídica, prejudica o coletivo. Desfigura e devolve o homem aos idos obscuros da Lei de Talião (“Olho por olho, dente por dente”). A responsabilização jurídica não comporta justiceiros. Por isso é tempo de dar um basta, mesmo na era da pós-verdade.
Afirmou Victor Hugo: “A palavra tem a leveza do vento, e, ao mesmo tempo, a força da tempestade”. Por isso, sempre, a opção pelo equilíbrio. E, outra vez, recordar: o bumerangue hoje arremessado um dia pode regressar e ferir quem o lançou, atingindo-o bem na testa. Vai ser sempre dor, nunca cura. Corrijamos a rota.
Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado