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O quarto de Fernando Pessoa

Relato aqui só um, entre muitos. Quando pretendi visitar o quarto em que viveu, ainda criança, no Largo de São Carlos...

Por José Paulo Cavalcanti Filho Publicado em 10/10/2025 às 0:00 | Atualizado em 10/10/2025 às 13:04

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Lisboa. Semana passada falei do amigo Fernando Pessoa. E como estamos na sua cidade, para ele só "uma eterna verdade vazia e perfeita" (Lisbon Revisited I), já digo que, durante os 10 anos que consumi escrevendo as 800 páginas de Fernando Pessoa, uma quase autobiografia, fui a Lisboa (exatamente) 30 vezes.

Nada a reclamar, ao contrário. Foi sempre bom. E trata-se do livro, sobre Pessoa, mais vendido e mais traduzido no mundo (12 países). Digo só para me gabar, deve ser a idade.

Nessas idas e vindas, deram-se fatos pitorescos. Relato aqui só um, entre muitos. Quando pretendi visitar o quarto em que viveu, ainda criança, no Largo de São Carlos.

O endereço do apartamento era número 4 de polícia, assim se diz ainda hoje, quarto andar esquerdo (de quem sai do elevador ou da escada). O edifício pertencia, então, à Fidelidade Mundial Seguros. Cheguei na portaria, mostrei os rascunhos do livro e pedi para subir. O porteiro, Fernando José da Costa Araújo, respondeu sem nenhuma simpatia

Não tenho autorização para deixar o sr. dr. subir.

Por favor, gostaria de falar com o diretor da empresa ou sua secretária.

O sr. dr. deve se dirigir à Sede.

Por favor, informe o telefone.

Não tenho autorização para isso.

Pode emprestar (apontei) as Páginas Amarelas?

Não.

Ocorre que, precisamente após sua última frase, abriu a porta do elevador. Bem na minha frente. Então lhe disse

- Por favor chame a polícia para me prender que, sem sua autorização, estou subindo ao quarto andar.

E subi mesmo. Para ver o Tejo brilhando em duas janelas de seu quarto. E o sino da minha aldeia tocando, em frente, no outro lado da Rua Serpa Pinto. Pessoa lembra dele em poema famoso (sem título, sem data):

Ó sino da minha aldeia,

Dolente na tarde calma,

Cada tua badalada

Soa dentro da minha alma.

E é tão lento o teu soar,

Tão como triste da vida,

Que já a primeira pancada

Tem o som de repetida.

Por mais que me tanjas perto

Quando passo, sempre errante,

És para mim como um sonho.

Soas-me na alma distante.

A cada pancada tua

Vibrante no céu aberto,

Sinto mais longe o passado,

Sinto a saudade mais perto.

Nenhuma dúvida de ser aquele mesmo. "O sino da minha aldeia é o da Igreja dos Mártires, ali no Chiado" (Pessoa, carta de 11/12/1931 para Gaspar Simões, amigo e depois biógrafo). Única que conheço onde os sinos ficam não à frente, mas nos fundos. Ao sair do elevador, na volta, o segurança estava com cara de poucos amigos

O sr. dr. subiu sem minha autorização?

Foi.

E agora, o que hei de fazer?

O sr. chama a polícia, vou sentar, esperamos e ela decide se me prende. Ou o senhor me deixa ir.

Não sei, sr. dr.

Eu sei.

Dito isto, lhe dei boa tarde e fui embora. Deu tudo certo. Graças. Adeus.

José Paulo Cavalcanti Filho, advogado

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