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O populismo religioso e a quixotesca batalha da Câmara de Vereadores

Uma estratégia política, já velha conhecida, de usar o nome de Deus e as bandeiras da "moral e dos bons costumes" -para atrair apoio

Por MARTORELLI DANTAS Publicado em 09/10/2025 às 0:00 | Atualizado em 09/10/2025 às 10:41

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Em duas decisões recentes, a Câmara de Vereadores do Recife revelou a sua face mais retrógrada e oportunista. Refiro-me à decisão de criar o "dia de combate à cristofobia" e à nota de repúdio à realização da 24ª Parada da Diversidade de Pernambuco, ocorrida no Parque Dona Lindu, no último dia 15 de setembro.

Em que lugar do Recife ou do estado de Pernambuco há manifestação de algo que poderia ser chamado de "cristofobia"? Se entendermos a expressão em seu sentido etimológico, como sendo medo ou aversão a Cristo e ao Cristianismo, será impossível deixar de ver neste "combate" uma peleja digna do Cavaleiro da Triste Figura, Dom Quixote.

Assim como o herói de Cervantes via nos moinhos de vento monstros que só apareciam à sua mente adoecida, assim também os vereadores do Recife enxergam em desfiles de Carnaval ocorridos no Sudeste do país, uma ameaça à honra de Jesus e de sua Igreja. Sinceramente eu não acredito que eles pensem de verdade que tais perigos existam. Seria desdenhar da inteligência deles supor isso, o que não acho adequado.

Penso, antes, que estamos diante do que seria justo chamar de "populismo religioso". Uma estratégia política, já velha conhecida, de usar o nome de Deus e as bandeiras da "moral e dos bons costumes" para atrair a atenção, o apoio e os votos de uma camada expressiva da sociedade, que é imensamente sensível e quase que magneticamente induzida pelo só pronunciar dos velhos slogans, amplamente explorados por integralistas no Brasil e por fascistas em todo o mundo.

Ao justificar a criação do dia de combate à Cristofobia, os proponentes sustentaram que é preciso "valorizar e divulgar Jesus Cristo e a Fé Cristã", ou seja, evangelizar... Não discuto que isso seja oportuno e importante, mas deve ser feito por suas igrejas. Fazê-lo por meio de leis municipais, dizendo-o de forma tão desassombrada, revela o quanto o nosso poder legislativo está refém desta forma nefasta de populismo, de ilusionismo retórico, de engodo e manipulação dos bons sentimentos do povo.

Ao fazer tremular estas flâmulas, eles colam em si a imagem auspiciosa de "bons moços", de pessoas que só querem o bem da pátria e da família. Quando, na verdade, a família que lhes interessa de fato é somente as suas próprias e se chamam de "patriotas", na mesma medida que apoiam movimentos que buscam deslegitimar as decisões da mais alta corte de justiça de nosso país e pugnam pela impunidade dos que contra ele se levantaram. Sou cristão e, além de professor universitário e advogado, pastor evangélico desde 1991.

Sempre que vi a fé se unir à política foi em prejuízo da primeira. Por definição a política é um espaço de luta por poder temporal, mas Jesus disse que "o meu reino não é deste mundo". Que inconveniente... faz-me lembrar a obra O Grande Inquisidor, de Fiódor Dostoiévski, na qual Jesus reaparece e começa a fazer curas e outros milagres, mas é preso por um velho e poderoso clérigo, a quem o povo obedecia sem pestanejar, justamente porque aprendeu a ver nele o símbolo da ortodoxia e da defesa dos melhores interesses da população.

Mas por que fazer de Jesus prisioneiro? Para que ele não diga nada novo. Para que ele não surpreenda amando a quem não se deve amar, perdoando o que não se deve perdoar e valorizando aquilo que, segundo os inquisidores (dos nossos e de todos os tempos) se deve desprezar. Particularmente, é preciso condenar a Parada da Diversidade.

Há alegria demais ali, há um desejo absurdo de que o amor de todos seja igualmente respeitado. E há, sobretudo, esse receio terrível de que ocorra, como na releitura de Rubem Alves da parábola de Lucas 10, um travesti ocupando o lugar do Bom Samaritano. Ao que me parece, querem os vereadores do Recife fazer cessar de uma vez por todas esta "hedionda manifestação" da comunidade LGBTQIA antes que sejamos todos surpreendidos, vendo o menino Jesus brincando com eles, com seus cabelos encaracolados, cheios de confetes e purpurina.

Martorelli Dantas, presidente da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB-PE, advogado criminalista e pastor Anglicano.

 

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