A república sitiada: o Congresso e a crise institucional
O modus operandi é claro. A Câmara pautou e aprovou a PEC que cria obstáculos diretos à abertura de ações penais contra parlamentares

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O que se observa no Congresso Nacional nas últimas semanas não é apenas uma sucessão de projetos e emendas, mas uma tentativa deliberada de captura da agenda pública por um bloco parlamentar disposto a trocar reputação por garantias normativas. A chamada “PEC da Blindagem”, o projeto de anistia aos golpistas, a manipulação da dosimetria penal, o aumento abrupto do fundo eleitoral e, simultaneamente, medidas de apelo popular — como a isenção da tabela do Imposto de Renda para rendas até R$ 5.000,00 e o projeto que aumenta as penas para o crime de falsificação de bebidas — configuram um padrão que precisa ser lido com lentes políticas e institucionais, e não apenas pela crônica cotidiana.
Em termos de avaliação pública, o saldo é inequívoco: a legitimidade do Parlamento está em queda acentuada. Pesquisas recentes do Datafolha e do Quaest mostram que a maioria dos brasileiros enxerga o Legislativo como movido por interesses próprios, evidenciando a erosão da confiança institucional que, em uma democracia, é elemento essencial para políticas públicas estáveis.
O modus operandi é claro. A Câmara pautou e aprovou a PEC que cria obstáculos diretos à abertura de ações penais contra parlamentares sob o argumento de “restabelecer prerrogativas”. Em paralelo, avançou o regime de urgência para o projeto de anistia que, na prática, busca aliviar condenações relacionadas aos atos golpistas de 8 de janeiro. Tudo isso ocorre em meio à recomposição de interesses e cálculos eleitorais. Não é coincidência que medidas de autoproteção legislativa sejam seguidas por propostas de apelo popular, numa tentativa explícita de amenizar a imagem negativa do Congresso.
As agendas políticas nunca são neutras. São construídas por atores que escolhem o que destacar e o que silenciar. Quando o foco é deslocado para medidas que protegem os próprios parlamentares, o fechamento da “janela de oportunidade” atende menos ao interesse público e mais à reprodução de grupos políticos que controlam a pauta. A teoria do agenda-setting demonstra como a ênfase institucional e midiática transforma preocupações de uma elite em temas centrais da opinião pública. É nítido que o Congresso tenta reconfigurar quais problemas merecem atenção e, com isso, manipular o debate nacional.
Um exemplo prático dessa distorção é a manobra orçamentária que elevou o Fundo Especial de Financiamento de Campanha de R$ 1 bilhão para R$ 4,9 bilhões, por meio de instrução normativa da Comissão Mista de Orçamento. Essa operação garante um fluxo de recursos generoso para bancadas e partidos e confirma a narrativa de um Congresso distante das prioridades sociais reais.
A resistência social e institucional a essas iniciativas também merece destaque. Mobilizações em várias capitais, com repercussão midiática e o apoio de organizações civis, além da atuação de instâncias do próprio Congresso — como a CCJ do Senado, que rejeitou por unanimidade a chamada “PEC da Blindagem” —, revelam que o campo político está longe de ser homogêneo. Essas reações alimentam o debate sobre legitimidade: quanto mais o Legislativo tenta se proteger, mais se distancia da sociedade e aprofunda a crise de confiança.
Do ponto de vista da opinião pública, as reações são nítidas. Pesquisas recentes indicam crescimento da rejeição à proposta de anistia: levantamento do PoderData mostra que 64% dos brasileiros se opõem à medida. A percepção de que o Congresso age em causa própria permanece elevada. Esses dados não são marginais e demonstram que a sociedade está atenta e que a margem de manobra para medidas de autoproteção é cada vez menor.
Nesse contexto, cabe ao presidente da Câmara, Hugo Motta, e aos líderes preocupados com a imagem institucional buscar um ponto de equilíbrio. O recuo estratégico é politicamente mais prudente do que insistir em pautas desgastantes. Uma democracia saudável não admite procedimentos feitos para blindar elites políticas. Ainda há espaço para uma agenda socialmente relevante e institucionalmente legítima.
Se o Congresso insistir em pautas voltadas à autopreservação, enquanto tenta compensar a crise de imagem com ações populistas, corre o risco de transformar o desgaste político em uma crise sistêmica. Uma democracia deslegitimada perde capacidade de governar e de promover avanços sociais e econômicos sustentáveis. A saída exige menos espetáculo retórico e mais prática republicana: transparência, responsabilidade e a reconstrução de um pacto mínimo entre representação e interesse público. O eleitor, por sua vez, deve lembrar que 2026 está logo ali — e que o voto continua sendo a principal arma contra a autodefesa disfarçada de governança.
Priscila Lapa, jornalista e doutora em Ciência Política; Sandro Prado, economista e professor da FCAP-UPE.