A Guerra do futuro já começou
Os nossos recursos humanos estão prontos e saberão transformar-se para lidar com as novas tecnologias. Mas elas precisam estar disponíveis.

Clique aqui e escute a matéria
Na falta de adjetivos mais inteligíveis para qualificar o mundo atual, valho-me do conhecido acrônimo VUCA — Volátil, Incerto, Complexo e Ambíguo — para lançar um alerta.
É hora de superarmos pruridos pacifistas e refletirmos com seriedade sobre a segurança e defesa do nosso País. No mundo de hoje, o estado de guerra predomina e os períodos de paz se tornam cada vez mais raros.
Dezenas de conflitos assolam o planeta. Eles envolvem tanto vigorosas potências militares quanto povos vulneráveis, atingem milhões de pessoas e destroem igualmente metrópoles modernas e vilas miseráveis.
Basta-nos lembrar da guerra entre Rússia e Ucrânia; dos combates em Israel, Palestina, Gaza e Líbano; da guerra civil no Sudão; da insegurança no Congo; da violência entre gangues no Haiti. Ainda que não queiramos, essas crises revelam um quadro de instabilidade que toca a realidade brasileira.
Há anos, o Estado-Maior do Exército (EME) enfrenta o dilema típico de países com restrições orçamentárias: como fortalecer o poder militar terrestre sem estar preso a cifrões? A resposta: modernizar e transformar.
Modernizar significa atualizar equipamentos, sistemas e processos já existentes, buscando maior eficiência sem alterar a essência da estrutura vigente.
É um movimento incremental, que substitui meios obsoletos por outros mais avançados, introduz algumas tecnologias, mas preserva doutrinas e formas tradicionais de emprego.
Transformar, por sua vez, exige repensar a lógica de aplicação do poder de combate e reorganizar a estrutura para atender os novos desafios.
Implica mudanças doutrinárias, culturais e operacionais - suportadas por avançada tecnologia - capazes de gerar uma instituição aparelhada, em condições de atuar em cenários inéditos e, muitas vezes, imprevisíveis.
Modernizar assegura a sobrevivência no presente; transformar garante a relevância no futuro.
Consciente dessa necessidade, o EME está estudando e deve apresentar ao comandante e ao alto-comando um conjunto de indicações estratégicas que orientarão a preparação da Força Terrestre nas próximas décadas.
A mensagem esperada me parece clara: o Brasil precisa preparar-se desde já para um ambiente de (in)segurança radicalmente distinto do atual, sob pena de comprometer sua soberania e a própria coesão social.
O horizonte definido é 2040. Para esse "jogo da guerra", o órgão estudou as pressões externas e os dilemas internos.
No plano externo, destacou o reposicionamento das grandes potências — cada vez menos comprometidas com a segurança coletiva; a exacerbação do nacionalismo; a expansão do crime organizado transnacional; e os efeitos devastadores de fenômenos climáticos extremos.
No plano interno, a cobiça internacional sobre a Amazônia; a constante exigência de apoio do Exército ao Estado em crises sanitárias, desastres naturais ou na segurança pública; e a frágil base industrial de defesa.
As guerras que se anunciam não serão mais decididas tão somente pelo poder de combate representado por tanques, fuzis e canhões. Ou por homens e mulheres imbuídos do senso de dever natural presente no ethos militar de cada combatente.
O campo de batalha do futuro será moldado, notadamente, por drones e sistemas autônomos, pela inteligência artificial, pelas operações cibernéticas, pelas guerras híbridas e pela disputa estratégica no espaço e na órbita terrestre.
Também estarão presentes nesses conflitos a biotecnologia, a neurotecnologia, armas de energia dirigida, mísseis hipersônicos, a logística apoiada em impressão 3D e as operações multidomínio.
Cabe uma lembrança às nossas lideranças políticas e à sociedade como um todo: tais tecnologias não são vendidas, emprestadas, doadas ou ensinadas, salvo em um alinhamento quase consanguíneo de um Estado com outro Estado. Portanto, conquistar capacidade de produzi-las nos é imperativo.
Os nossos recursos humanos estão prontos e saberão transformar-se para lidar com as novas tecnologias. Mas elas precisam estar disponíveis. E essa missão é do poder civil!
A paz tão ansiada só se sustenta quando amparada por uma força militar capaz de protegê-la, com meios e em recursos humanos qualificados. Preparar-se para a guerra do futuro não é um gesto de belicismo hobbesiano, mas um ato de realismo estratégico.
Otávio Santana do Rêgo Barros, general da Divisão de Reserva