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José Durval de Lemos Lins Filho: Entre a memória e o esquecimento: a PEC da Blindagem e a tentação da anistia no Brasil

No contexto brasileiro contemporâneo, faz-se imperativo recordar que a democracia não se fortalece mediante a indulgência nem pela blindagem

Por José Durval de Lemos Lins Filho Publicado em 25/09/2025 às 6:00 | Atualizado em 25/09/2025 às 8:10

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A trajetória democrática brasileira, consolidada com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, tem sido marcada por constantes tensões entre os poderes constituídos e por disputas permanentes acerca da construção da memória coletiva nacional.

Democracia

A denominada "PEC da Blindagem", recentemente aprovada na Câmara dos Deputados e atualmente em tramitação no Senado Federal, conjugada às propostas de anistia relacionadas aos eventos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, recoloca em evidência um debate fundamental para a maturidade institucional brasileira: os limites da proteção corporativa e os riscos inerentes à institucionalização da impunidade.

Considerando que a democracia não se define exclusivamente pelo exercício do sufrágio, como bem adverte Bobbio, esta questão transcende os aspectos meramente técnicos ou processuais, demandando uma reflexão aprofundada sobre a disposição de nossas instituições em ceder prerrogativas em nome da autodefesa corporativa e sobre o quanto tais concessões podem representar um enfraquecimento substancial do pacto democrático.

Blindagem

A Proposta de Emenda Constitucional denominada "PEC da Blindagem" estabelece a necessidade de autorização prévia do Congresso Nacional para que o Supremo Tribunal Federal possa dar prosseguimento a ações penais contra parlamentares. Tal mecanismo representa um retorno ao modelo institucional anterior à Emenda Constitucional nº 35/2001, que retirou do Poder Legislativo a prerrogativa de sustar processos criminais em curso perante a Suprema Corte.

Do ponto de vista dogmático-constitucional, a proposta suscita graves questionamentos quanto à sua compatibilidade com o ordenamento jurídico vigente. O princípio da separação de poderes, consagrado como cláusula pétrea no art. 60, § 4º, inciso III, da Constituição Federal, veda expressamente retrocessos institucionais que subtraiam do Poder Judiciário a competência constitucional para apreciar fatos típicos e responsabilizar agentes públicos.

A instituição de um filtro político prévio não apenas compromete a independência funcional do sistema de justiça, como introduz a lógica da autoproteção corporativa, característica típica de regimes pré-democráticos ou autoritários.

A análise da proposta revela, ainda, sua incompatibilidade com compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, impõe ao Estado o dever jurídico de investigar, processar e responsabilizar condutas criminosas praticadas por agentes públicos, "vedando a criação de obstáculos institucionais que possam comprometer a efetividade da persecução penal”.

Sob o prisma da teoria constitucional contemporânea, a PEC da Blindagem bem representa a "degradação constitucional" – um processo gradual de erosão democrática operado mediante reformas aparentemente legais, mas que, na realidade, comprometem os pilares fundamentais do regime democrático.

Anistia

São também sintomáticos desse processo erosivo os discursos acerca da anistia aos golpistas do 8 de janeiro. Paralelamente à tramitação da PEC da Blindagem, observa-se o avanço de projetos legislativos que pretendem conceder anistia aos envolvidos nos ataques às instituições democráticas ocorridos em 8 de janeiro de 2023.

Merece destaque o Projeto de Lei nº 5.064/2023, de autoria do Senador Hamilton Mourão, que propõe o perdão penal para crimes tipificados nos artigos 359-L e 359-M do Código Penal, relativos ao abolição violenta do Estado Democrático de Direito e ao golpe de Estado.

A anistia, enquanto instituto jurídico, pode assumir significado de reconciliação nacional em contextos específicos, como ocorreu durante o período da transição democrática nos anos 1970-1980.

No entanto, a concessão de anistia para os eventos de 8 de janeiro equivaleria a legitimar ataques diretos ao Estado de Direito, corroendo o núcleo essencial da Constituição. Além disso, a experiência constitucional comparada oferece lições relevantes sobre os riscos associados às anistias indiscriminadas.

Na Argentina, as leis de anistia promulgadas durante o governo de Carlos Menem foram posteriormente declaradas inconstitucionais pela Corte Suprema, que reconheceu sua incompatibilidade com os compromissos internacionais do país em matéria de direitos humanos.

Similarmente, no Chile, a progressiva revisão da anistia promulgada durante a ditadura de Pinochet demonstrou que a impunidade legal não contribui para a reconciliação nacional, mas antes perpetua divisões sociais e compromete a legitimidade das instituições democráticas.

Impunidade

A experiência histórica brasileira oferece elementos importantes para a compreensão dos riscos associados às anistias em contextos de crimes contra a democracia. A Lei de Anistia de 1979, embora tenha desempenhado papel relevante no processo de transição democrática, deixou como legado uma cultura de impunidade que se perpetuou nas décadas subsequentes.

A escolha política de perdoar sistematicamente violadores de direitos humanos retardou significativamente o processo de justiça de transição e comprometeu a construção de uma memória coletiva fundada no respeito aos direitos fundamentais.

A análise conjunta da PEC da Blindagem e das propostas de anistia para os eventos de 8 de janeiro revela um padrão preocupante de autodefesa institucional e relativização da responsabilidade penal. Trata-se de iniciativas legislativas que não apenas tensionam o princípio da separação de poderes, mas comprometem substantivamente a credibilidade do sistema democrático perante a sociedade civil e a comunidade internacional.

Memória

No contexto brasileiro contemporâneo, faz-se imperativo recordar que a democracia não se fortalece mediante a indulgência com seus opositores nem pela blindagem corporativa de seus representantes.

Sua consolidação depende, fundamentalmente, da efetividade dos mecanismos de responsabilização, da transparência das instituições e da preservação da memória coletiva. Ceder às tentações do esquecimento significaria trair o compromisso constitucional firmado em 1988 e colocar em risco o projeto republicano brasileiro.

A experiência constitucional comparada e a própria trajetória histórica nacional demonstram que a impunidade não contribui para a estabilidade democrática, mas antes a compromete. A verdadeira reconciliação nacional não se constrói sobre o esquecimento artificial, mas sobre o reconhecimento das violações passadas e o compromisso firme com a não repetição.

Nesse sentido, a rejeição tanto da PEC da Blindagem quanto das propostas de anistia configura imperativo constitucional e requisito essencial para a maturidade democrática brasileira. Somente assim será possível preservar o legado da Constituição de 1988 e assegurar às futuras gerações um Estado verdadeiramente democrático e republicano.

José Durval de Lemos Lins Filho é Especialista em Ciências Criminais e Mestre em Direito pela UFPE. Doutorando em Direito pela UNICAP - Universidade Católica de Pernambuco. Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da UNICAP - Universidade Católica de Pernambuco e da UPE - Universidade de Pernambuco. Diretor da FCAP/UPE - Faculdade de Administração e Direito da Universidade de Pernambuco. Advogado Criminalista.

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