Produzir a servidão: um projeto em curso
Abaixo reproduzirei o conteúdo da carta que recebi de uma professora, que expressa o absoluto abandono em que se encontra nossa profissão

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Qualquer educador que tenha lido alguma coisa de Paulo Freire, com certeza se lembrará da passagem em que ele fala da necessidade de, pela palavra, DENUNCIAR os aspectos desumanos e inaceitáveis de uma realidade social, e ANUNCIAR a possibilidade de uma outra realidade, sempre inscrita no que ele mesmo chamou de “inéditos viáveis”. O que me parece ainda mais difícil de aceitar – e que necessita de denúncia- é quando essa “Realidade” diz respeito, não exatamente às condições sociais em que vivem nossas classes subalternas e desfavorecidas, mas os próprios... educadores de uma rede pública, no caso a de São Lourenço da Mata, na região metropolitana do Recife.
Abaixo reproduzirei o conteúdo da carta que recebi de uma professora daquela rede de ensino e que expressa o absoluto abandono em que se encontra nossa profissão. Lamento leitor, não poder, como queria Freire, fazer nenhum ANÚNCIO alvissareiro ou esperançoso ao final desse artigo.
Eis a carta:
“Prezado Professor Brayner,
Escrevo para relatar a situação que está acontecendo com os Professores recém-concursados e ingressos na carreira pública do município de São Lourenço da Mata (PE). Os fatos se iniciaram desde a data da posse, em 25/07 último, até o presente momento.
Professores foram chamados de vagabundos e de encostados, NA CERIMÔNIA DE POSSE, perante todo o staff da Prefeitura e diante das suas famílias. Professores foram intimidados pela fala do Prefeito, NA CERIMÔNIA DE POSSE, perante o staff da Prefeitura e diante das suas famílias, fato documentado, em foto e vídeo, quando este disse que não negociava com o Sindicato dos Docentes, nem tinha medo de denúncia, porque ele “ganhava todas as causas/ações movidas contra ele”. Para a liberação de vagas destinadas aos concursados, foram demitidos 700 profissionais que atuavam sob regime de contrato temporário. No entanto, apenas 350 ascenderam ao cargo efetivo de servidores públicos, o que resultou em sobrecarga de trabalho para esses novatos.
Professores têm passado mais de 8h (hora-relógio) no local de trabalho (o tempo de permanência, no exercício da função, para uns, chega a ser de 09:30h) - sem menção a pagamento por acúmulo, ou por hora extra. Estrategicamente, para se evitar a carga horária total de 8h, Professores têm sido dispensados os seus primeiros horários da tarde, o que os obriga a estar à disposição das unidades durante todo o expediente comercial, penalizando-se, sobretudo, aqueles que residem em outras cidades e os que dispõem de outro vínculo. Profissionais de Gestão estão trabalhando além da sua prevista jornada de trabalho, tendo de enviar orientações aos Professores sobre os horários de aula e outras atividades na noite do dia anterior, incluindo aos domingos.
Não há previsão de recebimento auxílio transporte e nem alimentação. Há desconfiança de que os dias trabalhados, durante o mês julho, não sejam pagos. Foi estipulado um 2º Plano de Cargos e Carreira, válido apenas para os Professores que ingressaram na carreira pública mediante este concurso atual, mas a existência de 2 Planos é inconstitucional. Ademais, este 2º PCC sequer foi mencionado em edital, quando do certame, dando-se a entender aos candidatos que o Plano de Carreira a ser considerado, para efeito de opção pela conquista desse cargo, no Município, deveria ser pautada pelo Plano então vigente para os Professores efetivos mais antigos. O 2º Plano de Carreira não contempla bonificação pelas titulações de Especialista e de Doutor (Doutores estão sofrendo assédio de Gestores das Escolas para lhes forçar a exoneração).
Tais circunstâncias configuram a prática de exploração de trabalho em condições análogas à de escravidão, nos termos da Lei”.
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A pergunta que me ocorre, quando leio algo desse teor, é se nossa profissão resistirá (e por quanto tempo) a todos os ataques de que ela tem sido alvo em várias partes do mundo? Não posso dissociar tais atitudes da onda de fascistização que assola nossa época e que, historicamente, sempre atingiu de forma física ou institucional a educação, em todos os níveis.
Jason Stanley (“Como o fascismo funciona”) observa que “Na ideologia fascista, o objetivo da educação geral nas escolas é reforçar as normas hierárquicas (...) e alguns cursos devem ser removidos do currículo (...) para produzir cidadãos obedientes”. Penso que estamos a caminho de um projeto estratégico cujo objetivo é “anunciar” algo que Freire jamais imaginou: a produção de almas desarmadas, de consciências debilitadas e de subjetividades servis, tudo em prefeita articulação entre grupos empresariais poderosos, redes de ensino municipais e políticos interessados nos ganhos fiduciários de tal empreitada. Aqui, as redes municipais cumprem papel estratégico: é ali onde a educação de nossas crianças das classes populares começa!
Flávio Brayner é Professor da UFPE
Patrícia Fernandes é Doutora em Letras e professora do Ensino Fundamental