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VERÍSSIMO !!!

Luis Fernando Veríssimo, entre muitas qualidades raras, escrevia como um semi-Deus. E era um saxofonista de grandes méritos...........

Por JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHOjp@jpc.com.br Publicado em 19/09/2025 às 0:00 | Atualizado em 19/09/2025 às 10:23

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Somo hoje um Brasil radicalizado, fraturado, cada vez mais longe do país cordial sonhado por tantos. Urbi et orbi, o mundo inteiro segue nessa trilha. Mata-se nos Estados Unidos e celebra-se essas mortes, por aqui, alegremente. Rindo. Um escritor gaúcho até dá parabéns, aos dois filhinhos do finado, que não vão mais precisar conviver com ele nos próximos anos. Médicos, que tem a função de salvar vidas, celebram a pontaria do atirador.

Dou uma pausa, nesse tempo de horror, para falar sobre pessoas. De quem quero bem. E já lamento, amigo leitor, essa procissão de mortos. Não é justo. Alguns na terra, mais pertinho de nós, e essas perdas doem como um punhal no peito. Outros longe, que não víamos sempre, e nem por isso menos queridos. Pena. Por isso decidi, aqui, só lembrar de amigos. Lembranças tristes, mas boas.

Primeiro Jaguar, já falei nele. Agora Silvio Tendler. Nos últimos tempos, com enormes barbas brancas, mais parecia um Papai Noel. Com cadeira de rodas, em vez dos tradicionais trenós. E, entre as duas perdas, Veríssimo. Uma trindade santíssima. Saudades deles. Permitam, nestas páginas, algumas palavras sobre o gaúcho.

Luis Fernando Veríssimo, entre muitas qualidades raras, escrevia como um semi-Deus. E era um saxofonista de grandes méritos. Até creio que esse último elogio lhe deixaria mais feliz que os anteriores. Para além, e sobretudo, tratava-se de uma pessoa boa. De índole boa. Fraterno. E que sabia rir. Alguém muito especial, enfim. Sem par. Impar. Único. Calado quase sempre mas, e se algo assim for possível, de um silêncio muito inteligente. Genial.

Todos já falaram sobre ele. Falta, por aqui, esse pobre devoto seu. E o faço, agora, com o coração ainda em sangue. Por se tratar de amizade antiga, tornando a dor dessa perda maior ainda. E já digo que, à memória, vem lembranças.

Como nos tempos em que Paris era Paris, uma espécie de centro cultural do mundo. Estava disponível, por lá, um velho edifício de 6 andares e Luis Fernando inventou de juntar 6 amigos na empreitada. Já tinha 4 comprometidos: ele, Millor, Chico Caruso (se a memória não falha) e nós. A ideia era, em seguida, reformar tudo - energia, elevador, água; para, em seguida, sortear as alturas. Só que houve problemas com os vendedores, não deu certo, pena.

Depois, inspirado na sua ideia, até que tentei sozinho comprar o segundo andar do Les Deux Magots (Duas Estatuetas Chinesas, nome esquisito para nome de um Café). Em frente à igrejinha da Saint-Germain-des-Prés. Onde todo fim de semana tem, com orquestras de câmara, música barroca das boas com Vivaldi, Pachelbel, Scarlati; além, claro, Bach (maior de todos).

Não a mais rica, nem a mais famosa, só que (assim considero) a mais charmosa de Paris. Bem perto da encantadora Praça de Furstenberg, tão pequena que é mais conhecida como Placette (pracinha). No Quartier Latin, coração do 16ème. Também não deu certo, paciência, dona Lecticia vetou. Preferia Lisboa e, hoje, até agradeço por isso.

Teve mais sorte Luis Fernando, com ajuda que veio do jornalista Reali Júnior. E acabou comprando, sem parcerias, um apartamento na Rua Fresnel - que começa na Av. Albert de Mun e acaba nas escadarias da Rue de la Manutention, por trás da Embaixada do Iran. Perto da Torre Eiffel, uma bela vista. Parabéns para Lúcia, querida Lúcia, e toda a família.

Várias vezes perguntei a razão de não querer entrar na Academia Brasileira de Letras. Creio que tudo se deu por conta de seu pai, o grande Érico Veríssimo autor da trilogia O tempo e o vento e, mais, dezenas de outros grandes livros. Dando-se não ter o velho admitido, algum dia, ir para lá. Não por falta de insistência dos confrades, claro.

Historinha curiosa ocorreu quando Vianna Moog, cadeira 4 da ABL, pegou avião e foi até Porto Alegre insistir para que fosse candidato. Quando esgotaram os argumentos de recusar, foi ao extremo e respondeu "Só se for na sua vaga". Fim do convite, que não era tão grande assim o desejo do amigo.

Certo que, sem dúvida possível, todos nós na Casa receberíamos Luis Fernando de braços abertos. E como candidato único, caso se inscrevesse, que ninguém seria doido para disputar com ele. Um Príncipe das Letras!!! A versão que deu, para essa não inscrição, foi cômica. Dando-se ter descoberto que a espada entregue para pendurar no Fardão, durante a cerimônia de posse, não poderia ser levada para casa. Teria que ser devolvida. E isso, para ele, seria inaceitável. Só mesmo Luis Fernando...

Durante muitos anos, todos os janeiros, passava temporadas em nossa casa de praia na Lagoa Azul. Junto com amigos. Pena que esses tempos hoje se foram, retidos hoje só no coração. Recordo uma dessas vezes, quando fomos jantar no Beijupirá (em Porto de Galinhas); e o então presidente da Câmara dos Deputados, por sinal pernambucano, ao ver o gaúcho entrando gritou

- Luis Fernando Veríssimo, amigo velho, o que há de novo?

Silêncio absoluto. Todas as mesas pararam suas conversas, na espera da resposta. Dava para ouvir as moscas. E nosso grande escritor, que como já se disse antes não gosta de falar, deu resposta criada, na hora, depois muito usada por toda gente

- O que há de novo, Deputado, é essa nossa amizade.

Com palmas gerais. Agora, depois desse derrame que o levou à UTI, tudo ficou mais difícil para ele. Lúcia, querida Lúcia, companheira por 61 anos (invejas, que Maria Lecticia e eu temos só 54), nos contou que o trombo comprometeu sua fala.

O que é injusto. Alguém que viveu a vida entre palavras não conseguir mais falar. Como foi educado nos Estados Unidos, sendo alfabetizado em inglês (até dizia ter lido mais livros, nessa língua, que em português), no hospital pediram que pelo menos tentasse dizer algo em inglês. Para ver se haveria resposta. Em vão. Tristeza tanta.

Como despedida, lembro texto que Millor Fernandes escreveu para os Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira Sales, em que falava nele (e em todos nós):

"A última vez em que estivemos juntos (com Ariano Suassuna) foi o momento mais extraordinário. Na casa de nosso comum amigo José Paulo Cavalcanti Filho, jornalista, escritor e causídico (a ordem é a do leitor), numa praia de quatro quilômetros de extensão, em Porto de Galinhas. Ficamos lá horas, conversando dentro d'água, num mar indizível mas que vou tentar dizer.

"A meu lado, dentro das águas claras, a presença absolutamente surreal de Ariano, secundado por (apertem os cintos!) Luis Fernando Veríssimo. E eu ali, galera, me boquiabrindo diante da loquacidade brilhante de Ariano Suassuna e me boquifechando diante do mutismo perturbador de Veríssimo, mostrando, como sempre, que não é homem de jogar conversa fora. Ao redor a meteorologia, no seu melhor, enviando leves pancadas de chuva em momentos preciosos e vento sempre fresco, com dezoito nós e alguns laços os da amizade".

Adeus, amigo querido. Esse laços da amizade permanecerão, para sempre. Nos veremos, algum dia, em algum lugar que ainda não sei.

José Paulo Cavalcanti Filho jp@jpc.com.br

 

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