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Huntington ou Rufin: qual é o choque civilizacional de nosso tempo?

Huntington sustentou que, a partir do Muro de Berlim, embates globais não seriam definidos por ideologias, mas por identidades culturais e religiosas.

Por OTÁVIO SANTANA DO RÊGO BARROS Publicado em 13/09/2025 às 0:00 | Atualizado em 13/09/2025 às 9:56

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O término da Guerra Fria foi saudado pelos pensadores liberais como prenúncio de uma era de estabilidade, certificando suas teorias idealistas de um mundo kantiano.

Sobre o tema, além do conhecido livro O FIM DA HISTÓRIA, de Francis Fukuyama, que respirava otimismo irresistível, surgiram interpretações que contestavam essa visão idílica.

Duas obras se destacaram nesse debate: O CHOQUE DAS CIVILIZAÇÕES, de Samuel Huntington, e O IMPÉRIO E OS NOVOS BÁRBAROS, de Jean-Christophe Rufin.

Ambas buscavam responder à mesma pergunta: quais seriam as novas linhas de conflito do mundo pós-bipolar?

Huntington sustentou que, a partir da queda do Muro de Berlim, os embates globais não seriam mais definidos por ideologias, mas por identidades culturais e religiosas.

Dividiu o planeta em grandes blocos civilizacionais - Ocidente, Islã, Sinismo (China), Hinduísmo, entre outros - e afirmou que os embates entre eles moldariam o século XXI.

Sua obra marcou o pensamento geopolítico moderno, sobretudo ao antecipar a tensão entre o Ocidente e o fundamentalismo islâmico.

A falha de sua visão, no entanto, foi cristalizar as civilizações como blocos rígidos, ignorando as nuances internas e a possibilidade de integração entre eles.

Rufin, por sua vez, enxergou o futuro sob outra ótica. Descreveu o Ocidente dominante, posicionado acima de uma linha horizontal imaginária, como o centro de poder e prosperidade cercado por periferias instáveis.

Para ele, o maior risco para a estabilidade do mundo vinha da massa de excluídos que, marginalizada pela globalização assimétrica, pressionaria o "império" a partir de suas fronteiras.

Se comparadas, as duas obras revelam diagnósticos distintos, mas complementares. Huntington enfatizou as identidades e Rufin, as desigualdades.

Ambos acertaram em antecipar que o pós-Guerra Fria não seria um pacífico "fim da história", mas um terreno fértil para novos conflitos.

E o mundo de hoje?

Ele mistura elementos das duas visões. E não é preciso lupa sofisticada para intuir que alguns dos novos bárbaros recusam-se ao papel que Rufin lhes atribuiu, e afirmam-se orgulhosamente pertencerem ao chamado Sul Global - uma terra não de bárbaros.

Por outro lado, alguns países do império, ao não sustentarem a pujança do passado, caminham para a decadência, correndo o risco de se tornarem os novíssimos bárbaros.

O novo choque civilizacional localiza-se na fronteira entre os que são poderosos e os que são periféricos, independente das coordenadas geográficas desses países.

Em meio a essa complexidade, é imperativo reconhecer que a instabilidade contemporânea resulta da luta do império por se manter hegemônico e dos ex-bárbaros (os que se aceitam Sul Global) por buscarem um "lugar ao sol".

A disparidade de poder antes gritante agora é quase imperceptível, embora ainda presente em determinadas situações.

Mas, se para chegar às portas de Roma, esses ex-bárbaros precisarem marchar por caminhos vicinais não vigiados pelo império, eles o farão. Se precisarem construir estradas, eles o farão. Se precisarem comprar a passagem na fronteira, eles o farão.

Já demonstraram que têm poder para friccionar a fronteira; paciência como atributo natural e, portanto, podem esperar; assim como exalam destemor para enfrentar o mais forte, postura evidenciada ao longo de secular história.

Agora, uma reflexão que machuca o Brasil.

Segundo Huntington, nosso país e os lindeiros pertencem à civilização latina, uma agrupação que ele avalia como subcivilizaçao subordinada à Ocidental.

Para Rufin, seria um novo bárbaro, afastado das fronteiras do império, pouco influindo nas decisões globais importantes.

Para ambos, insignificante!

Choque das civilizações ou impérios sitiados, as linhas de fratura se deslocaram também para os campos do ciberespaço, para a excelência tecnológica, para a gestão ambiental equilibrada, para aperfeiçoamento e controle da IA e para a gestão e armazenamento de dados digitais.

Talvez um futuro promissor - nem de império, nem de novo bárbaro, mas de país não alinhado e independente - esteja atrelado ao domínio desses campos de inovação, nos quais o poder anda ao lado das vulnerabilidades, e ambos se redefinem a cada instante.

Otávio Santana do Rêgo Barros, general de Divisão da Reserva

 

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