Numa Alemanha dividida
A "Berlim Oriental" era realmente um belo conjunto arquitetônico, onde ficaram, após o muro, construções centenárias...................

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O jornalista e imortal da Academia Brasileira de Letras, Ignácio de Loyola Brandão, publicou, recentemente, na Seção "Cultura e Comportamento", do Jornal O Estado de São Paulo, uma crônica onde relembra os tempos em que trabalhou numa Alemanha dividida, morando em Berlim e enfrentando todas as dificuldades que uma situação como aquela provocava.
Não trabalhei nem morei em Berlim naqueles tempos da "Guerra Fria" - mas lá estive, como repórter, em 1969, apenas quatro meses antes que aquele muro vergonhoso e separatista fosse derrubado, por uma revolta do povo, que se cansara de uma divisão imposta e inaceitável, e o comunismo começava a ser varrido os países do Leste Europeu.
Éramos sete jornalistas - dois brasileiros, dois bolivianos, uma chilena, uma nicaraguense e um costarriquenho - sendo seis profissionais da mídia impressa e apenas uma radialista, titular de num programa de alta audiência numa das principais emissoras de rádio em Santiago. Procedentes de locais diferentes, nos encontramos, todos, no saguão do antigo Aeroporto de Berlim, procedentes de Frankfurt, onde chegamos em voos diferentes. Na época, só voavam nos céus de Berlim aeronaves das "Potências Aliadas" vencedoras da Segunda Guerra: Estados Unidos, Inglaterra, França E União Soviética.
A programação oficial era eclética, mas não cansativa. Havia palestras sobre os mais variados temas - desde a ajuda alemã a países ditos do "Terceiro Mundo" , até uma disfarçada "mea culpa" pelos horrores da Segunda Guerra, cujo retrato mais doloroso era a Igreja Matriz no centro de Berlim, ou o que dela ficou após os bombardeios constantes e impiedosos por parte da aviação aliada. Ali, até Jesus Cristo foi vítima da violência.
Após uma semana nessa programação oficial, na qual soubemos que uma instituição alemã fez vária doações para as obras sociais de Dom Hélder Câmara, essa agenda incluía também uma visita a Berlim Oriental, devidamente negociada com as autoridades comunistas, do outro lado do muro. E lá fomos nós. Acompanhados de uma intérprete, todos com passaportes na mão e uma autorização para a visita, cruzamos o muro e recebemos a companhia de militares fardados e armados, que conferiam e devolviam cada passaporte, sem proferir uma única palavra.
A "Berlim Oriental" era realmente um belo conjunto arquitetônico, onde ficaram, após o muro, construções centenárias, a Universidade mais importante da Alemanha, Museus, Bibliotecas, Centros de Pesquisa, etc. além de algumas poucas Indústrias reerguidas após o final da guerra. Havia também várias praças e esculturas no melhor estilo soviético, construídas e edificadas em homenagem à memória dos militares soviéticos que morreram na Guerra.
Era visível, também, o contraste entre capitalismo e socialismo: se em Berlim Ocidental os bares, restaurantes, lojas, magazines estavam sempre cheios, as avenidas eram ocupados por carros deluxo, alemãs ou não - BMW, Mercedes, Lamborghinis, Ferraris etc. - nas ruas quase vazias de Berlim Oriental via-se poucos automóveis trafegando, a maioria de "Ladas", fabricados na Russia, barulhentos e poluentes. Os bares - poucos - eram semi- vazios, assim como alguns restaurantes com garçons idosos e pouco simpáticos, que atendiam uma clientela igualmente idosa e quase silenciosa. Era impossível não sentir profundamente o contraste entre essas duas "Berlins" - e na parte ocidental da cidade já se comentava sobre a inevitável queda do Muro.
Após a nossa visita, voltamos para nosso hotel, e na mesma noite fomos assistir, no camarote especial da Prefeitura, a primeira apresentação da Orquestra Filarmônica de Berlim, após a morte do lendário maestro Herbert Von Karajan. Esse concerto foi regida pela Spala, jovem e bela. Em frente ao Portão de Brandeburgo, um dos monumentos que mais identificam Berlim, estudantes costumavam se reunir e protestar contra o muro que dividia a cidade. Do outro lado do muro, protestos de estudantes eram inadmissíveis.
De Berlim fomos até Bonn, visitamos a Deutsche Welle, onde trabalhou o economista pernambucano Sérgio Buarque e, enquanto alguns companheiros do Grupo já programavam o retorno para seus países, eu fui conhecer Heidelberg e sua famosa Universidade, de lá segui para Munique, onde tive como intérprete uma simpática senhora, com mais de um 1,80m de altura, que me levou para almoçar num restaurante de um convento, onde só uma pequena elite era admitida. De Munique, saí sozinho, num carro alugado, para testemunhar a fuga de populações inteiras tangidas da antiga Tchecoslováquia, que se desmanchava numa guerra separatista.
E onde senti de perto a amarga sina do povo cigano, retratada no rosto de uma criança de não mais de 10 anos de idade,cujos olhos tristes demonstraram um pouco de alento quando recebeu das mãos de uma assistente social o primeiro alimento do dia. Na carroça onde estavam seus pais, uns poucos pertences e a consciência de um destino incerto. Regressei para Munique, amargando a incerteza daquela gente, segregada ate entre os segregados. Deixei Berlim - e menos de seis meses depois o Muro caiu. Ou foi derrubado. Com ele muitos "berlinenses"puderam rever e abraçar parentes que o muro separava, os Jornalistas que cobriam as duas partes tiveram material farto para explorar e escrever por um bom tempo.
Só voltei à Alemanha alguns anos depois quando o muro era apenas uma lembrança triste - não se viam mais os bares vazios com seus garçons cansados; os restaurantes quase desertos e com cardápios pobres os velhos e poluentes automóveis "Lada", recolhidos definitivamente ao lixo d história. E no Portão de Brandemburgo, quando reúne os jovens de hoje, eles provavelmente estão discutindo futebol. Porque o comunismo, a Cortina de Ferro e a Guerra Fria sã apenas lembranças nos livros de história.
Ivanildo Sampaio , jornalista