Adultização precoce e aprendizagem: impactos neurocientíficos e educacionais
Nos anos iniciais do ensino fundamental, a adultização se manifesta através de cobranças acadêmicas desproporcionais, comparações entre crianças...

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“A criança é feita de cem. A criança tem cem linguagens, cem mãos, cem pensamentos, cem modos de pensar, de jogar e de falar. (…) Mas ela rouba noventa e nove.” Assim escreveu Loris Malaguzzi no seu livro As cem linguagens da criança, ressaltando que a infância é um território pleno de criatividade, imaginação e experimentação, mas que muitas vezes é encurtado pela pressão de uma sociedade que antecipa comportamentos e símbolos adultos. Hoje, assistimos a um fenômeno crescente: crianças expostas a músicas com letras sexualizadas, coreografias reproduzidas em festas e redes sociais, roupas que sugerem sensualidade e influenciadores digitais que exploram a imagem infantil em busca de engajamento. Esse processo, chamado adultização precoce, compromete a vivência natural da infância e expõe meninos e meninas a riscos emocionais, sociais e até de saúde. Psicólogos e pediatras já alertam para os impactos: baixa autoestima, ansiedade, puberdade precoce, distúrbios de identidade e dificuldades de autocontrole.
O que muitas vezes não se percebe é que esse fenômeno também atinge diretamente a aprendizagem escolar. A criança que é pressionada a “pular etapas” da infância tem menos espaço para brincar, imaginar e criar, justamente os caminhos mais eficazes para aprender. Quando o tempo da infância é invadido por símbolos adultos, a atenção e a curiosidade, que deveriam estar voltadas para o mundo da descoberta, são desviadas para preocupações com aparência, aceitação social e comportamentos que não correspondem ao seu estágio de desenvolvimento.
Na educação infantil, a adultização enfraquece o brincar simbólico, base da linguagem, da socialização e do pensamento lógico. Brincadeiras de faz de conta, construção com blocos, jogos de regras simples ou atividades artísticas permitem que a criança explore conceitos matemáticos, linguísticos e espaciais de forma natural, além de desenvolver autorregulação, memória e criatividade. Quando o brincar é substituído por tarefas com foco em desempenho precoce ou por imitação de comportamentos adultos, a criança perde essas oportunidades cognitivas, comprometendo a base do aprendizado que será exigida nos anos seguintes.
Nos anos iniciais do ensino fundamental, a adultização se manifesta através de cobranças acadêmicas desproporcionais, comparações entre crianças, pressões por leitura precoce ou “resultados” em atividades que deveriam ser exploratórias. Essas situações geram estresse, que compromete a capacidade de atenção e memória de trabalho, essenciais para a aprendizagem. A criança sobrecarregada perde a curiosidade natural, torna-se menos participativa e tem dificuldade em desenvolver raciocínio lógico e capacidade de resolução de problemas, competências fundamentais para qualquer área do conhecimento.
Nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio, a pressão adulta se intensifica com a antecipação de responsabilidades e preocupações típicas da vida adulta, como escolhas de carreira, aparência, relacionamentos e imagem social. Esse cenário provoca ansiedade, estresse crônico e redução da motivação, comprometendo não apenas o desempenho acadêmico imediato, mas também a capacidade de aprender de forma autônoma e crítica. Ao mesmo tempo, limita o desenvolvimento de competências socioemocionais, como empatia, autorregulação, colaboração e resiliência, que são essenciais para a aprendizagem real, para desenvolver projetos coletivos e o enfrentamento de desafios futuros.
O efeito cumulativo disso tudo sobre a aprendizagem é, portanto, significativo. Crianças e adolescentes que têm suas infâncias antecipadas perdem não apenas momentos de descoberta e diversão, mas também a oportunidade de construir estruturas cognitivas sólidas, desenvolver autonomia intelectual e emocional, além de formar bases seguras para outros aprendizados ao longo da vida. O prejuízo não é apenas acadêmico; trata-se de um impacto profundo sobre o desenvolvimento humano, que pode reverberar em escolhas profissionais, relações sociais e saúde mental ao longo de toda a vida.
É por isso que a adultização precoce não é apenas um problema individual ou familiar: é um fenômeno cultural que exige ação conjunta. A escola, em cada etapa, deve agir de forma específica: na educação infantil, protegendo o brincar; nos anos iniciais, fortalecendo autoestima e a crítica; nos anos finais, oferecendo acolhimento e educação digital; e no ensino médio, formando jovens protagonistas da mudança.
Proteger a infância e a fase posterior é garantir que o “cem” de cada criança - suas cem linguagens, cem sonhos, cem formas de ser - não seja roubado, mas vivido plenamente. Cabe a nós, como educadores, famílias e sociedade, resistir à pressão da adultização e devolver às nossas crianças o direito ao seu tempo. Ao garantir essas condições, formamos pessoas mais preparadas para enfrentar desafios futuros com autonomia, resiliência, equilíbrio emocional e capacidade de tomar decisões conscientes, construindo não apenas aprendizes competentes, mas indivíduos plenos e integrados em sua humanidade.
Gabriela Camarotti é diretora pedagógica do Escola Vila Aprendiz
Mozart Neves Ramos é titular da Cátedra Sérgio Henrique Ferreira do Instituto de Estudos Avançados da USP de Ribeirão Preto e professor emérito da UFPE