Gustavo Krause: O estado democrático em ação
Vale repetir, desafios, riscos e ameaças desabam tão fortemente sobre as sociedades que não só assustam como parecem instalar uma crise
Clique aqui e escute a matéria
A democracia representativa é um organismo vivo em permanente movimento. O seu funcionamento tem a virtude de assimilar e se adaptar às mudanças de modo a evitar rupturas e a ferir mortalmente valores e princípios que asseguram a estabilidade de uma convivência civilizada.
Neste ambiente de contradições e distintas visões de mundo, a institucionalidade democrática vive riscos e efetivas ameaças, agressão e negação da política, atividade que tece os espaços de convergência e a solução pacífica dos antagonismos.
Atualmente, vale repetir, desafios, riscos e ameaças desabam tão fortemente sobre as sociedades que não só assustam como parecem instalar uma crise permanente e destrutiva quanto ao futuro dos sistemas democráticos.
Não se trata de aparência. Na recente história, não faltam pesquisas, estudos e fatos que confirmam avanços autocráticos a serem enfrentados e vencidos pelos mecanismos que, ao expor debilidades, revelam, na verdade, “o monopólio do uso legítimo da força física”, elemento constitutivo do Estado, segundo a expressão weberiana. Cabe, pois, ao Estado, organizar e equilibrar a dominação de homens sobre homens. De outra parte, cabe à cidadania fundar e manter sólidos alicerces para submeter a ação estatal a valores universais e regras que assegurem a paz social.
Daí, a referência ao “Estado Democrático de Direito” que não supõe uma organização imune às falhas, tampouco uma capacidade inesgotável de resistir aos inimigos de uma sociedade plural e aberta. No entanto, é uma realidade política que desenvolve meios de superar dificuldades sem operar rupturas.
No caso brasileiro, dois eventos reforçam a crença na afirmação das armas institucionais contra os inimigos dos estatutos legais.
O primeiro. No dia 28 de agosto, foi deflagrada a operação Carbono Oculto pelos agentes públicos de diferentes esferas governamentais com uma dimensão jamais vista no país: 1.400 agentes, 200 mandados de busca e apreensão, 350 alvos, 10 estados.
Ao desmantelar a organização, veio à tona a dimensão gigantesca do perigo a que estava (e está) exposta a sociedade brasileira diante de uma complexa e sofisticada rede de criminalidade. Na rede, está inserido um rol de delitos cujos tentáculos alcançam a ordem econômica, adulteração de combustível, crimes ambientais, lavagem de dinheiro, fraude fiscal e estelionato.
A análise dos números extraídos dos documentos apreendidos revela, ainda, que o circuito criminoso utilizou a cadeia produtiva do setor de combustíveis (fazendas, terminais portuários, distribuidoras), lavando o dinheiro sujo, por meio das fintechs em mais de uma dezena de fundos imobiliários e de investimentos.
No entanto, o admirável êxito da operação nos deixa alguns ensinamentos. Entre eles, e da maior gravidade, é que o tal “crime organizado” não se refere à engenharia que coloca em funcionamento uma formidável máquina para desafiar e enfrentar o aparelho estatal; “organizado” assume significados muito bem conceituados pelas autoridades governamentais: um fenômeno mundial que é a migração da ilegalidade para a formalidade do mundo dos negócios, fantasiada de elegantes “empresários” e bem-falantes CEOs; o outro significado é a troca dos “paraísos fiscais” pela bancarização nacional das fortunas criminosas.
Por sua vez, a grande lição se expressa na eficaz cooperação institucional dos entes federativos em diferentes esferas de competências o que comprova a necessidade de um suporte legal (a PEC da Segurança) para institucionalizar a ação planejada, a articulação operacional, recursos financeiros e tecnológicos capazes de vencer as forças do mal.
Trata-se de uma luta sem trégua. O crime organizado penetrou no espaço público com a senha da corrupção. São assustadores o tamanho da delinquência demonstrado pela operação Carbono Oculto e o provável vazamento de informações a partir das forças de segurança. É o que sugere a execução de, apenas, seis dos 14 mandados de prisão autorizados judicialmente.
O outro evento teve início no dia 02 de setembro marcado pela singularidade histórica e pelo ineditismo processual: o julgamento no STF do ex-presidente Jair Bolsonaro e sete corréus que é objeto da atenção da sociedade brasileira e de enorme cobertura jornalística da imprensa internacional.
Com toda razão. Afinal de contas, o que está em jogo é a jovem democracia brasileira que nasceu em solo, convenhamos, pouco fértil, senão hostil ao regime democrático. É o que conta nossa história e, agora, será construída uma nova narrativa que, espero, confirme os ideais e os valores republicanos.
Além das expectativas, dos desdobramentos da atual situação, o que merece maior relevo é a vítima, o Estado Democrático de Direito, que entra em ação para assegurar aos seus algozes todos os direitos e prerrogativas que lhes seriam negados, caso consumada a tentativa de golpe.
A democracia, convém salientar, não aprecia espetáculos; assume a clareza da transparência; repudia o estrondo das rupturas. Os déspotas, estes sim, se nutrem das demonstrações de força como ritual que amedronta ao refletir o poder da dominação. Tudo sob o manto do obscurantismo e da impunidade.
Em tempos de crescente autoritarismo, o contraponto é o vigor das instituições como resposta e o ativismo democrático como movimento cívico. Ao exercer, sob as limitações do regramento constitucional, o Estado entra em ação, faz valer a coerção que o justifica e a justiça que o qualifica.
Funcionando sob imperfeições, tensões e desafios, vale, mencionar os ilustres cientistas sociais Marcus Melo e Carlos Pereira (Por que a democracia brasileira não morreu? Ed. Companhia da Letras. SP. 2024) que definem como o paradoxo de democracia: “A torcida pode vaiar, mas o jogo continua”.
Gustavo Krause, ex-governador de Pernambuco