Pouso às cegas com a soberania nacional
Enquanto continuarmos relegando a defesa de nossos interesses estratégicos a segundo plano, seguiremos à mercê dos ventos geopolíticos

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No passado, os antigos aeronavegadores cruzavam os céus orientando-se pela comparação entre a carta topográfica aberta na cabine e o terreno avistado pela estreita janela dos aviões.
À medida que se aproximavam do momento do pouso, apontavam o bico da aeronave para o "T" pintado na cabeceira da pista e desciam lentamente, mantendo um olho no altímetro e outro no solo.
O alívio tomava conta dos pilotos, das tripulações e dos passageiros quando as rodas tocavam o chão e os freios eram acionados com vigor, reduzindo a velocidade até a parada completa.
Felizmente, os tempos mudaram. A tecnologia de navegação e comunicação evoluiu significativamente, as aeronaves tornaram-se mais robustas e as viagens aéreas muito mais seguras.
Nesta semana, veio a público a notícia de que os pilotos do avião que transportava a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, precisaram recorrer ao "velho oeste" da aeronavegação, utilizando cartas topográficas para comparar com o terreno e localizar o aeroporto de Sófia, na Bulgária, após o sistema de navegação entrar em pane.
Inacreditável! Como é possível que, em pleno século XXI, uma aeronave de alto nível tecnológico precise ainda usar métodos rudimentares de controle?
A resposta ficará, por ora, em suspense, até que analistas de controle de voo da União Europeia e técnicos da fabricante da aeronave esclareçam a pane.
No entanto, rumores nos corredores dos órgãos de segurança do Velho Continente sugerem que o sistema GNSS (Global Navigation Satellite System) responsável pela geolocalização do avião, teria sofrido interferência eletrônica da Rússia.
De forma simplificada, esse sistema determina nossa posição na superfície da Terra. Colhe sinais captados em aviões, navios, carros, celulares, relógios e outros dispositivos, calculando a distância valendo-se de um conjunto de satélites até definir, com precisão, latitude, longitude e altitude.
É certo, mesmo sem perceber, que o GNSS está em sua vida. Você já utilizou Uber para enfrentar o trânsito infernal da sua cidade ou encomendou uma pizza de pepperoni pelo iFood? Bingo! Uber e IFood usam esse sistema.
Voltemos à suposta interferência russa.
Em um cenário apocalíptico, imagine milhares de aeronaves cruzando os céus ao redor do mundo - segundo o site FlightAware, cerca de 14.000 voam simultaneamente - com esse sistema simplesmente desligado.
Em uma guerra entre potências detentoras de tecnologia avançada para guiamento de mísseis, sem o uso do geolocalizador, o tão celebrado "processo cirúrgico" na seleção de alvos se transformaria na sangria dos barbeiros medievais: muito sangue, matança indiscriminada e pouca efetividade.
É por isso que as nações realmente poderosas garantem sua própria autonomia tecnológica, mantendo sistemas geolocalizadores independentes: o GPS dos EUA, pioneiro entre os sistemas globais; o GLONASS da Rússia; o GALILEO da União Europeia; e o BEIDOU/BDS da China. Há ainda os de alcance regional, como o NAVIC da Índia e o QZSS do Japão.
Vale observar que três países integrantes do BRICS figuram entre os detentores dessa imprescindível tecnologia. E o Brasil?
Parece ainda adormecido em seu pueril "sonho meliano", acreditando ingenuamente que será protegido pelo idealismo das relações internacionais ou pela benevolência das grandes potências.
A realidade, porém, é outra: o mundo tornou-se mais hostil, os egoísmos nacionalistas se intensificaram e depender de sistemas estrangeiros para garantir nossa segurança é, no mínimo, irresponsável.
Nos meus últimos textos tenho buscado difundir a mentalidade de preocupação com o tema defesa. Alguns leitores, ao comentarem esse esforço, me afiançam, infelizmente, que nossa sociedade não demonstra a mínima preocupação com esse assunto. Sigo firme em meu propósito.
Enquanto continuarmos relegando a defesa de nossos interesses estratégicos a segundo plano, seguiremos à mercê dos ventos geopolíticos - vulneráveis, dependentes, pousando às cegas uma velha aeronave que carrega passageiro muito importante: a soberania nacional.
Otávio Santana do Rêgo Barros, general de Divisão da Reserva