Um estranho menino
Vejo hoje, uma preocupação cada vez maior de nossos intelectuais e pedagogos em colocar os direitos humanos no coração das ações pedagógica

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Acabo de participar de um importante debate na UNICAP, com a professora Aída Monteiro, especialista em Educação e Direitos Humanos. O debate deu-se no interior da IVº Semana Dom Hélder Câmara de Direitos Humanos, organizada por meu amigo Manoel Moraes, Coordenador da Cátedra Dom Hélder Câmara daquela Universidade.
Vejo, no mundo de hoje, uma preocupação cada vez maior de nossos intelectuais e pedagogos em colocar os direitos humanos no coração das ações pedagógicas, até porque estamos vivendo uma "época de liquidação", como chamou Baudrillard, em que todas as garantias mvodernas de afirmação da dignidade humana estão sendo metodicamente atacadas. Quando falamos de "DIGNIDADE HUMANA", nós não estamos falando apenas de um "respeito" que toda pessoa humana merece e exerce. Com o termo "dignidade" (e foi Kant quem provocou a discussão moderna sobre o assunto!) nós queremos dizer, caro(a) leitor(a), que nunca houve, não há nem nunca haverá alguém exatamente igual a você: há coisas que têm preço e, portanto, podem ter um equivalente e podem ser negociadas, mas há "coisas" que não têm preço, têm VALOR e, portanto, não têm equivalência. É essa ausência de equivalência que faz de cada um de nós um ser único e irrepetível, que chamamos de DIGNIDADE.
Mas, essa unicidade de cada um precisa ser conquistada, construída. E é aqui onde entra o sentido propriamente pedagógico da nossa "humanização" e dos direitos que a acompanham. E O PRIMEIRO DIREITO DE QUE PRECISAMOS DISPOR É AQUELE QUE TEMOS DE NOS TORNARMOS HUMANOS!
Uma pequena história pode ilustrar o que acabei de dizer.
Na primavera do ano de 1800 pareceu na floresta do Aveyron (sul da França) um "menino-lobo"! Foi capturado roubando comida na cozinha de um camponês: estava nu, andava de quatro patas, uivava para a Lua, não falava nenhuma palavra humana articulada, um tiro de espingarda ao seu lado não lhe chamava a atenção, mas o barulho do vento nas árvores sim! Tinha aproximadamente 12 anos e deram-lhe o nome de Viktor. Foi envido para o Conservatoire de Sourds et Muets (Instituto de Surdos e Mudos) de Paris e ficou aos cuidados de um jovem (e ambicioso!) médico chamado Jean Itard. Itard escreveu dois relatórios que o tornaram famoso e rico proferindo palestras por toda a Europa. Viktor ficou aos cuidados de uma governanta, continuava uivando para a Lua, nunca chegou a falar mais de 30 palavras, qualquer descuido ele voltava a andar de quatro patas... Morreu aos 42 anos!
Mas a presença dessa criança na Europa Iluminista provocou um enorme e escandaloso susto: o que acontece com uma pessoa que não foi educada por outros seres humanos que, por sua vez, também foram educados? Ele simplesmente não adquire aqueles predicados subjetivos que fazem de cada um de nós um ser único e irrepetível. Assim, o primeiro Direto que temos é o de nos tornarmos "HUMANOS", e se não formos educados por outros humanos podemos nos tornar um... menino-lobo! Todos os outros DIREITOS (políticos, sociais, civis, difusos...) são decorrência do fato de que dispomos de racionalidade, de consciência, de eticidade, de liberdade para construir um projeto de existência próprio (claro que isso depende das condições sociais e econômicas em que vivemos!) e nos tornarmos SUJEITOS, uma palavrinha, aliás, que vem enfrentando um sério desgaste depois que se decretou que o pobre do Descartes é o grande vilão da Modernidade (se ele tivesse aceitado o convite de Maurício de Nassau e vindo para o Recife, brincado o Carnaval de Olinda e se apaixonado por uma bela pernambucana, não teríamos racionalismo ocidental, nem as formas colonialistas que acompanham! Que azar: Pernambuco poderia ter sido o berço da Pós-Modernidade, já no século XVII!).
Contra-factualidades históricas à parte, Viktor, o menino-lobo, com sua estranha presença em meio a uma Europa "humanista", indicou que sem a educação de outros homens não nos tornamos homens. Isso, para mim, é suficiente para justificar o CARÁTER IRREVOGAVELMENTE PÚBLICO DE TODA EDUCAÇÃO: não consigo imaginar que alguém, para se tornar "humano" tenha que passar num supermercado pedagógico para adquirir certas quantidades ou litros de linguagem conceitual e articulada, de consciência, de liberdade, de moralidade..., com as quais construirá os pressupostos daquela dignidade.
Os outros DIREITOS veem depois, até porque, sem aqueles predicados subjetivos, sobretudo a consciência e a linguagem, esses Direitos simplesmente não têm nenhum sentido.
Flávio Brayner, professor Emérito da UFPE