Dayse de Vasconcelos Mayer: O sopro inspirador da palavra e o peso sinistro do preconceito
As pessoas gostam de afirmar que não têm preconceito. Uau! Que maravilha! Como se não fôssemos produto das nossas origens e da nossa cultura!

Clique aqui e escute a matéria
Reli a obra “Festa no Covil”, de Pablo Villalobos, romance fábula ou alegórico sobre o mundo contemporâneo. A trama é uma espécie de viagem excêntrica ao universo da droga.
A narrativa, embora acompanhe o olhar do filho de um narcotraficante, não erradica a pureza e a inocência do jovem que flertava com as palavras e gostava de ler o dicionário antes de adormecer.
A obra foi alcunhada de narcoliteratura, revelando a existência do preconceito também no espaço crítico-literário.
As pessoas gostam de afirmar que não têm preconceito. Uau! Que maravilha! Como se não fôssemos produto das nossas origens e da nossa cultura!
Esquecemos que nem sempre portamos a bagagem de conhecimento para embasar as nossas ideias e convicções. Por isso nos antecipamos a determinadas análises, mesmo sem experiência e sem lastro intelectual. Concorremos, nesse caso, para um pré-julgamento, nem sempre correto ou verdadeiro.
Estereótipos e generalizações
O homem preconceituoso é aquele que revela uma atitude discriminatória fundada em estereótipos e generalizações. Por isso todos nós somos preconceituosos: um pouco mais, um pouco menos ou muito. Para ser mais bem compreendida, anotamos três exemplos com caráter pessoal.
Há poucos dias eu estava numa fila para saque num caixa eletrônico e uma senhora indagou, ao observar a minha sacola de compras, se a loja onde eu havia adquirido o bem não era demasiado cara. Confirmei a assertiva e expliquei que aos 90 anos compramos de forma açodada porque não temos vigor ou energia para comparação de preços.
A referência aos 90 anos era uma espécie de patuscada ou gracejo de final de semana, quando estamos mais descontraídos. A verdade camuflada é que eu aguardava, como um lobo na estepe, uma réplica indignada da senhora.
Pensava escutar louvores acerca da minha juventude, frescor e beleza (José Paulo Cavalcanti não vai gostar). Infelizmente, a resposta sacrificou a minha autoestima: “Minha mãe é mais nova do que a senhora apenas um ano. Ela também fica muito cansada e com as pernas doloridas quando anda muito. Por isso ela pede aos filhos que a socorram. A senhora não tem filhos que façam as suas compras?”
Como é óbvio, a conversa não prosseguiu. Percebi que meu espírito lúdico, aberto a devaneios e fantasias, havia sumido abruptamente. O ser piadista, gozador e que se alimenta de quimeras e causos, havia sido substituído pela figura raivosa ou colérica. Devo até confessar que se digladiaram em meu cérebro os palavrões usados pela minha filha, sempre objeto de censura por mim.
Um reencontro embaraçoso
Na sequência desse arrepiante e fortuito incidente tipicamente feminino, recordei o dia em que encontrei num shopping center um amigo dos tempos de Faculdade. Além de contemporâneos, havíamos sido vizinhos na minha adolescência, embora ele fosse - juro – muito mais velho.
Fui ao encontro do advogado bem preparada para o espaçoso abraço e na esperança de socializar com o passado. Ele me olhou num misto de assustadiço, insosso e confuso. A frase iracunda irrompeu sem demora: “Desculpe-me, creio que a senhora está equivocada. Não me recordo de termos sido apresentados”.
Embaraçada, mas sem nenhuma expectativa de “thrashar” a espécie masculina, pensei comigo: os homens, perdem, algumas vezes, a camada do verniz da cortesia ou polidez. Para sair do impasse, disse o meu nome em tartamudeio.
A resposta foi ainda mais torpe: - juro que você não se parece “nada e nada” com a minha colega. Ela era muito magrinha, baixinha e “escurinha”. Respondi que engordei demais e sofria de distúrbios de melanina. O descortês e tóxico “amigo” acreditou em tudo isso.
Uma lição, juntamente com outras que podem ser extraídas da relação humana, permaneceu até os dias de hoje: não se deve voltar no tempo sem aceitar a inevitabilidade da perda. Nélida Piñon tinha razão quando disse: “as figuras do passado são abutres” que devoravam a sua carne ((Um dia cheguei a Sagres).
Encontro no cabeleireiro
Não fiquei por aí. Três semanas atrás eu me encontrava no cabeleireiro e encontrei uma senhora conhecida. Perguntou, num rasgo de bisbilhotice e atrevimento, por uma grande amiga portuguesa que sempre me visitava no Recife. Respondi que ela havia casado e que estava viajando muito pouco.
Escutei perplexa: “Casou com uma amiga?” Não – respondi - casou com um brilhante advogado. Seguiu-se, então, outro comentário infame: “Pois eu jurava que vocês formavam um casal, embora existisse uma grande diferença de idade”. Pensei comigo que uma resposta à altura revelaria maior preconceito da minha parte. Tive a sorte de ser chamada para cortar os cabelos e me livrar daquela situação pouco confortável.
Preconceito de três tipos diferentes
As ocorrências citadas, para tristeza da procuradora de justiça Nelma Quaiotti (indagou, certa vez, se eu não tinha medo de me expor) revelam três modalidades básicas de preconceito: etário, cor e sexual.
Todos eles ricos em hostilidade consciente e inconsciente, daí a conclusão de que o preconceito é uma modalidade de guerra ao lado de tantas outras que consomem as páginas dos nossos veículos de comunicação.
Imagino que a ameaça de ataques injustos e o alcance da paz vêm justificando a tentativa de desconstrução do abuso por meio da lei. Já que não é possível a alteração dos valores e princípios da sociedade, num passe de mágica, vamos substituir palavras conhecidas por outras inexistentes, como é o caso mais recente do vocábulo “adultização”.
Viagem mágica ao passado
De igual modo, vamos usar a lei para apunhalar a liberdade de expressão e suprimir vocábulos do léxico na tentativa de dizimar o preconceito. Esquecemos que ao pensar numa palavra realizamos uma viagem mágica ao passado.
O mais insignificante dos vocábulos detém a capacidade de impedir que o ontem se evapore. São anos de vida que resgatamos apenas com a leveza de uma expressão. E ela significará, consciente ou inconscientemente, exatamente aquilo que desejamos que ela signifique.
Nesse caso, a permuta de um termo por outro não tem o condão de erradicar o preconceito. Ele se manifestará de outras formas, talvez até mais invasivo. Um exemplo muito comum no Brasil é o feminicídio.
A Lei Maria da Penha (Lei n.11.340 de 07/08/2006) não aboliu a misoginia. Afinal, a norma não é um fórceps usado para remover o preconceito em nosso cérebro. Num dia qualquer, a velha panela arrebenta e o acúmulo excessivo de pressão interna, decorrente do excesso de ódio ou raiva, irrompe e o crime estará consumado.
Palavras se assemelham aos objetos
As palavras também se assemelham aos objetos. Drummond disse melhor: cada palavra mantem o estado de dicionário. Eu completaria, num ato de ousadia: E sempre na expectativa de que alguém aceite a incumbência de desvendar seu segredo ou mistério.
No poema “A procura da poesia” essa ideia é confirmada: “Penetra surdamente no reino das palavras/Lá estão os poemas que esperam ser escritos./ Estão paralisados, / mas não há desespero, /há calma e frescura na superfície intata. / Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário”.
Recentemente, fui apresentada pela minha neta como uma “avó fodona”. Conversei sobre o episódio com o articulista e ex-governador Gustavo Krause. Revelei que em nenhum momento senti que minha dignidade foi arranhada ou ultrajada, embora a jovem tenha usada uma palavra condenada ou não convencional.
Percebi que ela foi verdadeira naquilo que desejava realmente comunicar. Também foi verdadeira na forma de rejeição das determinações exageradas ou abusivas da sociedade “sem preconceito”. Ela não foi, como disse Clarice Lispector, “um touro castrado e convertido em boi”.
*Dayse de Vasconcelos Mayer, advogada e doutora em ciências jurídico-políticas.