Artigo | Notícia

Diplomacia em ruptura

É preciso abandonar narrativas simplistas e compreender que, na diplomacia, os símbolos são tão poderosos quanto os tratados........

Por EDUARDO CARVALHO Publicado em 22/08/2025 às 0:00 | Atualizado em 22/08/2025 às 9:55

Clique aqui e escute a matéria

Em editorial publicado em jornal de circulação nacional, o leitor se depara com um raciocínio curioso. Logo no primeiro parágrafo, o articulista responsabiliza Jair Bolsonaro pelo tarifaço imposto pelos Estados Unidos ao Brasil durante a gestão do presidente Donald Trump, afirmando que o ex-presidente brasileiro teria feito lobby para proteger seus interesses pessoais, mesmo à custa da economia nacional. A acusação é grave: Bolsonaro seria, nesse contexto, um traidor da pátria. No entanto, nos parágrafos seguintes, o próprio texto passa a desenvolver, com mais consistência, um argumento que transfere a responsabilidade diretamente para o presidente Lula, associando-o ao realinhamento político e comercial do Brasil com China e Rússia, como parte de uma estratégia de confronto geopolítico em relação aos Estados Unidos.

Essa ambivalência editorial é reveladora. Mais do que uma contradição retórica, expõe a dificuldade de certos setores da opinião pública em lidar com um diagnóstico incômodo: se o Brasil é hoje alvo de sanções e retaliações comerciais, isso não decorre de um gesto isolado de Bolsonaro, mas do acúmulo de decisões diplomáticas ao longo do atual governo Lula. Desde que reassumiu a presidência em 2023, Lula adotou uma política externa orientada por uma agenda de alinhamento com países que contestam a ordem liberal ocidental, sobretudo China e Rússia, ao mesmo tempo em que intensificou sua retórica crítica em relação aos Estados Unidos.

Essa postura ultrapassou o campo discursivo e se traduziu em gestos concretos: a defesa da desdolarização do comércio internacional, o apoio ao fortalecimento do Brics como contraponto ao G7, declarações elogiosas ao presidente Xi Jinping e o silêncio diante da agressão russa à Ucrânia. Embora amparado por uma lógica de busca pela multipolaridade, esse reposicionamento foi interpretado em Washington como uma guinada ideológica. A volta de Donald Trump à Casa Branca, em 2025, com seu estilo combativo e unilateral, encontrou no Brasil uma justificativa conveniente para a imposição de tarifas e barreiras comerciais.

A alegação de que Bolsonaro teria convencido Trump a retaliar o Brasil soa implausível diante da natureza pragmática da política externa norte-americana. Sanções comerciais raramente resultam de afinidades pessoais; quase sempre são instrumentos de defesa de interesses estratégicos. Ainda que Bolsonaro tenha buscado apoio político nos EUA, é pouco verossímil que isso explicasse um tarifaço de alcance estrutural. Já Lula, ao redesenhar a política externa brasileira com base em alinhamentos ideológicos, alterou de maneira substantiva a percepção internacional sobre o papel do Brasil no mundo.

Historicamente, o país foi reconhecido por sua tradição diplomática de equidistância e moderação, mantendo relações produtivas com diferentes polos de poder global. Essa reputação, construída por décadas pelo Itamaraty, conferiu ao Brasil a imagem de mediador confiável. A inflexão promovida por Lula, ao polarizar o país em meio às disputas sistêmicas entre blocos, rompe com essa herança e reduz a capacidade diplomática brasileira. O Brasil deixa de ser ponte para se tornar fronteira.

O custo dessa mudança é evidente. As tarifas impostas pelos EUA atingem diretamente setores estratégicos da economia, como o agronegócio e a indústria de base. Ao mesmo tempo, a aproximação com regimes autoritários, ainda que possa trazer benefícios pontuais em termos de financiamento ou comércio, tende a afastar investidores preocupados com transparência, segurança jurídica e estabilidade política. As dificuldades em avançar em acordos com a União Europeia e os riscos reputacionais são sintomas de uma política externa que privilegia a confrontação em detrimento da cooperação.

Lula poderia ter liderado o Brics a partir de uma abordagem mais pragmática, priorizando a cooperação econômica sem se alinhar automaticamente a agendas de contestação geopolítica. Poderia, inclusive, ter buscado um papel de mediador no conflito da Ucrânia, o que teria elevado o prestígio internacional do Brasil. Ao optar por uma retórica de antagonismo à chamada ordem ocidental, o governo comprometeu espaços estratégicos em nome de um discurso que nem sempre gera resultados concretos.

A retaliação dos EUA, portanto, não é uma reação ao passado de Bolsonaro, mas um reflexo do presente de Lula. O editorial ao tentar diluir essa realidade, incorre em equívoco analítico. O Brasil paga hoje, sobretudo, pelo que decidiu se tornar nos últimos dois anos. A coerência diplomática é um ativo precioso — e difícil de reconstruir quando perdido.

Nesse cenário, é preciso abandonar narrativas simplistas e compreender que, na diplomacia, os símbolos são tão poderosos quanto os tratados. Ao adotar posturas ambíguas em relação a temas como democracia, direitos humanos, segurança energética e liberdade de expressão, o Brasil enfraquece sua voz no concerto das nações. O tarifaço não é apenas punição: é um sinal. Cabe ao governo interpretá-lo com responsabilidade e visão de longo prazo.

Como destacam estudiosos das relações internacionais como Joseph Nye e Fareed Zakaria, o poder no século XXI não se define apenas pela força militar ou econômica, mas também pela capacidade de exercer soft power — a influência derivada da reputação, da cultura e da legitimidade moral. O Brasil, ao abrir mão de sua posição de equilíbrio, renuncia a parte desse poder. E o mundo, pragmático como é, cobra a fatura.

Eduardo Carvalho, autor de livro "Por um Brasil digno"

 

Compartilhe

Tags