Adultização?
Chegamos, não na pós- contemporaneidade, mas na perturbadora SOCIEDADE SADEANA onde as crianças podem ser comercializadas sexualmente,

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Chamou-me a atenção a imensa repercussão que teve a "live" do - Ai de mim!- "influencer" Felca que, ao se postar como paladino da proteção da infância, ganhou mais 8 milhões de seguidores (além dos 30 milhões que já tinha!). Ele conseguiu provocar uma indignação moral generalizada, coisa que raramente exercemos em circunstâncias igualmente deploráveis. O mais curioso é que quando Bolsonaro falou que, num passeio de motocicleta pela periferia de Brasília, viu uma criança "adultizada" flertando com ele, não teve nenhum prurido moral para dizer que "pintou um clima!". Fico me perguntando, onde estavam os paladinos da infância adultizada? Ironias à parte, essa história da adultização exige uma reflexão bem mais profunda e deve ir além de legislações coercitivas ou prisões de canalhas comerciantes de sexo infantil.
Até o século XVI°, não custa lembrar, não existia INFÂNCIA como uma etapa separada da vida adulta, exigindo cuidados e atenções especiais e vista como dotada de uma psicologia particular. Existiam CRIANÇAS, como etapa biológica e, assim que atingiam certa idade em que falavam a língua articulada e podiam andar sozinhas, já participavam da vida adulta, frequentando tavernas, acompanhado os homens nas guerras, presenciando a vida sexual dos adultos... E, claro, como não havia uma distinção entre infância e adultez, a ideia de "adultização" não tinha sentido! Bruno Bettelheim ("Psicanálise dos contos de fada") lembrou-nos que, até o aparecimento da imprensa (século XVI), a cultura e sua transmissão era feita de forma ORAL, e não existia contos infantis ou literatura infantil. Era essa ORALIDADE da transmissão cultural que impedia os limites modernos da noção de infância e vida adulta. Criança era ADULTO EM MINIATURA e pode-se ver em Gilberto Freyre, cenas de crianças da elite recifense indo pra missa vestidas de fraque, cartola, monóculo e... bengala!
Com o aparecimento da imprensa de tipos móveis (Gutemberg) e a criação de escolas dentro de templos reformados (pelo Calvinismo e pelo Luteranismo), o texto escrito (falo da Bíblia vernacular) começou a circular, inicialmente entre adultos e só muito depois é que a alfabetização de crianças teve início (ver Ph. Ariès, "A vida familiar no Antigo Regime"). A imprensa produziu, assim, uma separação entre dois mundos: o mundo secreto dos adultos e o mundo ingênuo das crianças (as chamadas histórias infantis, fábulas, contos... tinham a função de mostrar e advertir as crianças sobre os perigos do mundo: a floresta, a noite, o sedutor, a feiticeira, o estrangeiro, o andarilho das estradas..., como mostrou Jean Delumeau em seu "História do medo no Ocidente").
Joshua Meirovitz (professor de Filosofia da Educação da Universidade de Yale) observou que a separação entre adulto e criança foi consequência, então, da criação da imprensa e da literatura escrita, e ali onde havia uma biblioteca (coisa rara e cara!) os livros "infantis" ficavam na parte de baixo e os dos adultos em alturas inalcançáveis para as crianças (na minha casa, essa "altura" do livro proibido não me impediu de ler Henry Miller aos 13 anos!). E foi assim que começaram a aparecer as roupas infantis, os brinquedos infantis (na Grécia antiga também existiam, mas eram para os filhos dos Ilotas, os pobres!) e, com a emergência da família burguesa - séc. XV- XVI- aparecem as divisões dos espaços domésticos, com os quartos das crianças e o dos adultos, lugares onde havia uma separação entre a intimidade e a visibilidade.
Até o século XVII, com a chegada do "rousseauismo" ("Emílio ou sobre a Educação", 1744) a ideia de infância não estava institucionalizada: agora a infância vai ser vista, sobretudo pela influência do Romantismo, como um ser frágil, inexperiente, necessitando cuidados especiais, e precisando da orientação dos adultos num mundo hostil. E com os Românticos alemães a ideia de prologar a infância para além do espaço doméstico e institucionalizá-lo numa ideia pedagógica, faz aparecer os "Kidengarten" - os "jardins de infância". E a ideia de "jardim" é bastante reveladora e supõe um plantar, um irrigar, um podar, um florescer e, mais tarde, um colher!
Diga-se, de passagem, que as crianças nunca foram muito bem vistas pela Filosofia: Platão achava que, nelas, estava o potencial do Bem e do Mal; Agostinho achava que elas eram o resultado imediato do pecado original; Descartes achava que elas eram o "escândalo da Razão", pois nasciam sem ela - a Razão- e demoravam a adquiri-la!; o próprio Freud via as crianças como "perversos polimorfos"... Dá pra perceber o prestígio que a infância gozou ao longo da história ocidental!
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