Ivanildo Sampaio: Aquele que foi, sem nunca ter sido
Entrevistei o ex-presidente Jânio Quadros, com ele já cassado pela ditadura e sem nenhum cargo público, a bordo de um navio cargueiro

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Neste próximo dia 25 do fatídico mês de agosto, completam-se 64 anos da renúncia do então presidente Jânio Quadros, que, sem maiores explicações, deixou a Presidência da República antes de completar oito meses no cargo para o qual foi eleito – dando início a uma crise política que se estendeu até o Golpe Militar de 1964, piorando o que já era ruim: com os militares, que ficaram 20 anos no Poder, vieram as prisões arbitrárias, tortura, mortes clandestinas, cassações de políticos, fechamento do Congresso e tudo de ruim que uma ditadura pode promover.
Jânio havia tomado posse, numa Brasília ainda em construção, no dia 31 de janeiro de 1961, eleito pela por uma coligação de Partidos, com uma votação expressiva em todas as regiões, derrotando o Marechal Henrique Teixeira Lott, que democraticamente aceitou a derrota e retirou-se da vida pública. Jânio não precisava de inimigos lá fora: já tinha entre seus apoiadores o governador do Rio de Janeiro, o imprevisível e encrenqueiro Carlos Lacerda – que, assim como Jânio, também seria, mais tarde, cassado pelo Golpe Militar de 1964, provando do mesmo veneno que ajudara a preparar. Os militares não queriam sombra: cassaram os direitos políticos de Juscelino Kubitscheck, de João Goulart, de Jânio e do próprio Lacerda, além de governadores como Miguel Arraes e Seixas Doria.
Entrevistei o ex-presidente Jânio Quadros, com ele já cassado pela ditadura e sem nenhum cargo público, a bordo de um navio cargueiro no qual voltou de uma viagem à Europa –e que fundeou no Recife, sem atracar no porto. Foi uma reportagem para o Jornal O Estado de São Paulo, no qual nunca trabalhei, mas para o qual produzi alguns “freelancers”. Este foi um deles. Registre-se que eu estava recém-formado, fora estagiário da Revista Manchete e Editor Regional do JC, mas tinha pouca experiência para uma tarefa como aquela.
Relembro aqui:
A Sucursal do jornal O Estado de São Paulo ficava na Rua do Riachuelo, era chefiada pelo veterano jornalista Otávio Morais e tinha nos seus quadros excelentes profissionais, como Paulo Fernando Craveiro, Carlos Garcia e José (Zezito) do Rego Maciel Filho. Naquele final de semana, Paulo Fernando estava nos Estados Unidos, Zezito Maciel encontrava-se de férias e Carlos Garcia padecia de um forte resfriado. Como eu já havia feito antes algumas matérias menores para o Jornal, mas nunca uma entrevista de tamanha relevância, Otávio Morais só me confiou a tarefa por absoluta necessidade e porque precisava atender a solicitação da sede do jornal, vinda de São Paulo, quase que em caráter de urgência. Não tinha como protelar.
O navio no qual o ex-presidente regressava, por questão de calado, não deveria atracar – mas apenas “fundear”, a pouca distância do Porto. Para me acompanhar na tarefa, Otávio Morais alugou um pequeno barco com dois condutores e contratou o fotógrafo Antonio Colhado, da equipe do Diário de Pernambuco. E lá fomos nós, ao encontro com o ex-presidente Jânio Quadros. Subimos no navio por uma escada de cordas que foi jogada pelos tripulantes para o nosso barco – e Jânio estava ciente de que dois jornalistas o esperavam.
E fomos para a entrevista. Tão logo sentamos, numa sala ampla com uma mesa redonda no centro, o ex-presidente fez sinal para um dos tripulantes, que lhe trouxe uma bandeja com algumas garrafas de cerveja de origem dinamarquesa, chamada Tuborg. Sua mulher, Dona Eloá, sentou ao seu lado, ele começou a beber e também nos ofereceu. Agradecemos a oferta, mas rejeitamos a cerveja.
O passivo de Jânio era complicado. Eleito com uma expressiva votação em quase todos os Estados da Federação, com um discurso de combate à corrupção, que teria ocorrido na gestão de Juscelino Kubitschek, especialmente na construção de Brasília, Jânio surpreendeu com outras medidas. Por exemplo: logo nos primeiros dias de Governo proibiu corridas de cavalos nos dias de semana em todos os Jóqueis Clubes do País; proibiu o uso de biquínis em todas as praias brasileiras; acabou com as rinhas de galo; vetou o uso e fabricação de lança-perfume durante o carnaval – e outras medidas menores de pouco efeito prático, mas com grande capacidade de irritar a sociedade como um todo. As más línguas diziam que, depois do golpe militar, Jânio Quadros foi caçado por vingança do general Costa e Silva, então Ministro do Exército, que, adepto das corridas de cavalos, não se conformava com a medida do Presidente fechando os Joqueis ao longo da semana.
Mas, Jânio renunciou, João Goulart, seu vice-presidente, encontrava-se fora do País e os militares, que o acusavam de “comunista”, não o queriam no cargo; Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul, rebelou-se e iniciou um movimento nacional em defesa da legalidade, colocou a Brigada Militar do Estado de prontidão, com ameaça de guerra civil. O medo tomou conta da Nação e Brizolla virou um nome nacional. Vieram os apaziguadores, negociou-se o Sistema Parlamentarista para a posse de Jango, que ainda não retornara. Jango foi empossado pelo Congresso, tendo Tancredo Neves como primeiro-ministro. Com pouco tempo, realizou-se um “plebiscito” nacional e o Parlamentarismo foi rejeitado, devolvendo plenos poderes ao Presidente João Goulart. Foi aí que começou o período de nossa desgraça.
Com pouco tempo, pregando uma série de reformas e cercado de incendiários, Goulart foi quase unanimidade na rejeição, por parte dos militares e por adversários políticos de centro e de direita. O resto é o que sabe: veio o golpe de Abril de 1964, com o general Castelo Branco à frente e apoio da Marinha e da Aeronáutica; caminhando, a partir daí, para o Ato Institucional numero 5, com a cassações inexplicável de mandatos; fechamento das Casas Legislativas; perseguições; prisões arbitrarias, tortura e morte nos quartéis e tudo de ruim que uma ditadura militar pode oferecer. O início do processo de abertura só veio com o General Ernesto Geisel – e a normalidade total só foi reconquistada, 20 anos depois, na gestão de José Sarney, eleito pelo voto indireto como vice de Tancredo Neves, que morreu sem ter tomado posse. Tudo isso que o País viveu e sofreu começou num trágico mês de agosto, com a renúncia de um presidente que, segundo estudiosos de sua biografia, renunciou esperando que o Congresso rejeitasse a renúncia e o reconduzisse ao cargo com plenos poderes, o que nunca aconteceu. Até porque a renúncia é um ato unilateral.
E o país inteiro pagou por mais de 20 anos, com seus torturados, seus mortos e seus desaparecidos pelo ato tresloucado de Janio Quadros. Naquele dia, já distante, em que entrevistei, ele estava com os direitos políticos cassados e, segundo revelou na entrevista, pretendia editar um Dicionário da Língua Portuguesa e voltar a ser professor do ensino médio. Não sei, mas acho que não fez uma coisa nem a outra. Mas sei que 10 anos após a cassação voltou à Política, disputou e perdeu uma eleição para Governador de São Paulo, vencida por Ademar de Barros, seu maior adversário; disputou e venceu uma eleição para a Prefeitura, derrotando o sociólogo Fernando Henrique Cardoso. E depois disso, chegou ao final de sua controvertida escalada política – cuja trajetória, em alguns episódios, deixa de lado a história para se transformar em lenda. Ou em folclore.
Ivanildo Sampaio é jornalista