Nilo Otaviano: O viés da Lei Rouanet e a desiguldade que marginaliza o Nordeste
É urgente que o Brasil repense a sua política de fomento cultural. As iniciativas do MinC acabam mostrando a desigualdade estrutural

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A Lei Federal de Incentivo à Cultura, aclamada como a principal ferramenta de fomento cultural do país, frequentemente é analisada por sua capacidade de movimentar grandes volumes de recursos. No entanto, uma leitura mais atenta e crítica dos dados de aplicação desses fundos revela uma profunda e persistente desigualdade regional, que marginaliza vastas porções do território nacional. A concentração histórica de recursos nas regiões Sul e Sudeste, já evidenciada nos dados de 2021 a 2025, parece ser reforçada até mesmo nas iniciativas mais recentes do Ministério da Cultura (MinC) que, ironicamente, buscam corrigir essa distorção.
A análise do período de 2021 a 2025 já demonstrava uma alarmante disparidade: o Nordeste, segunda região mais populosa e um verdadeiro celeiro de manifestações culturais genuinamente brasileiras, recebeu apenas 6,41% do valor total de recursos captados. Em contraste, o Sudeste, sozinho, abocanhou 73,64% do montante. O estado de Pernambuco, com sua rica tapeçaria cultural que vai do Frevo ao Maracatu, ficou com um montante de R$ 171,7 milhões, correspondendo a apenas 1,61% do total nacional. Esse panorama já seria motivo suficiente para um questionamento profundo sobre a eficácia da lei em democratizar a cultura. Contudo, as ações pontuais do Ministério da Cultura nos últimos anos adicionam novas camadas a essa crítica.
Em 2023, buscando direcionar o olhar para as regiões historicamente esquecidas, o MinC lançou o Programa Rouanet Norte, destinando um montante de R$ 24 milhões para projetos na região. Em 2024, em resposta à trágica crise climática que assolou o Sul do país, o governo federal agiu prontamente, criando o Programa Rouanet Rio Grande do Sul e alocando um robusto aporte de R$ 276 milhões.
Recentemente, a tão aguardada iniciativa de fomento ao Nordeste foi anunciada. O Programa Rouanet Nordeste foi lançado com a promessa de destinar R$ 40 milhões para os projetos culturais da região. A primeira impressão é de uma medida positiva, mas uma análise comparativa revela uma nova, e talvez mais sutil, forma de desigualdade.
A comparação entre os valores é espantosa. O Rio Grande do Sul, um único estado, recebeu R$ 276 milhões em um programa emergencial. Em contraste, os nove estados da região Nordeste, que somam mais de 57 milhões de habitantes, receberão, em seu programa especial, apenas R$ 40 milhões. Isso significa que a verba destinada a toda a região Nordeste representa menos de 15% do valor direcionado a um único estado do Sul. A discrepância é imensa e profundamente simbólica, sugerindo uma hierarquia de prioridades na alocação de recursos públicos.
Ao comparar o Programa Rouanet Nordeste com o Programa Rouanet Norte de 2023, a desproporção também se manifesta. Embora o montante de R$ 40 milhões seja maior em números absolutos do que os R$ 24 milhões para a região Norte, a diferença não reflete a dimensão e a população do Nordeste. A região Nordeste possui quase três vezes a população do Norte, o que torna o valor anunciado para o Nordeste comparativamente pequeno em termos relativos.
A disparidade não se resume apenas a números absolutos. Ela se traduz em oportunidades perdidas e em um ciclo vicioso de subfinanciamento. Os recursos da Lei Rouanet, originários de renúncias fiscais de Imposto de Renda e IPI, deveriam ser um instrumento de desenvolvimento cultural para todo o Brasil. No entanto, a concentração no Sul e Sudeste, somada a essas novas ações governamentais que replicam a desigualdade, faz com que a lei se configure como uma ferramenta que perpetua a distância entre o Brasil rico e o Brasil marginalizado.
A cultura do Nordeste, rica e diversa, tem um potencial incalculável de geração de renda, emprego e identidade. Projetos culturais bem-sucedidos em estados como Pernambuco não apenas impulsionam a economia local, mas também enriquecem o panorama cultural do país como um todo. Contudo, a falta de financiamento adequado e equitativo dificulta a profissionalização do setor, limita o alcance de talentos e impede que o patrimônio cultural imaterial da região seja devidamente valorizado e preservado.
É urgente que o Brasil repense a sua política de fomento cultural. Essas iniciativas do MinC mostram que a desigualdade estrutural é tão arraigada que se manifesta até mesmo em programas específicos de compensação. Para que a Lei Rouanet deixe de ser um reflexo da desigualdade econômica e se torne, de fato, uma alavanca para o desenvolvimento cultural equitativo, é preciso ir além de pequenos aportes. É necessário um compromisso real com a descentralização dos recursos, com a implementação de critérios de distribuição que priorizem a equidade e com a criação de mecanismos que facilitem o acesso de produtores culturais de todas as regiões, garantindo que o fomento à cultura seja um direito, e não um privilégio de poucos.
Nilo Otaviano, presidente do Instituto Brasileiro do Frevo, IBF