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Pensamento digitalizado

Livre pensar, é só pensar, mas se digitalizar pode virar confissão de coisas que não seriam de Deus, nem da pátria nem da liberdade.

Por SÉRGIO GONDIM Publicado em 15/08/2025 às 0:00 | Atualizado em 15/08/2025 às 9:54

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Todo mundo vez por outra tem pensamentos secretos. Pode-se desejar mil vezes a mulher do próximo, pensar em candidatar-se para melhorar de vida ou em comprar o voto do eleitor. Nesses casos, é prudente que não sejam digitalizados.

Se existe uma coisa livre é o pensamento, apesar de que nas ditaduras existe medo até de pensar e a mente passa a autocensurar palavras como liberdade ou democracia. É uma violência invisível, mas não impede que se imagine um outro sentido para as letras das músicas, cantando uma coisa pensando em outra, mesmo temendo que se torne legível com bolinhas sobre a cabeça textualizando-o como nos gibis e revistas de histórias em quadrinhos. Viver tendo medo e reprimindo o pensamento. A que ponto pode ser levado o ser humano.

Bom mesmo é pensar até encaixar as peças para um diagnóstico difícil ou fazendo um gol de bicicleta, agradando a pessoa amada, imaginando a pátria livre, soberana, justa e com pleno emprego. Sonhar com uma lei aplicada aos gestores tornando a digitalização dos pensamentos possível e automática quando planejando uma licitação, o por fora, a propina ou a rachadinha. Estaria tudo lá para quem quisesse ver, com transparência total e irrestrita.

Muitos pensamentos não são assim tão medonhos. Pensar em fazer um gol de mão como Maradona, em comprar peixes ao pescador profissional em pleno mar para não voltar desmoralizado da pescaria ou na mentira gentil para agradecer um presente recebido que não foi do gosto.

Existe muita coisa boa para distrair a mente, mas os pensamentos que transitam, infelizmente nem sempre são bons. Tem quem se dedique a pensar detalhadamente em matar alguém e até dois ou três, só para quebrar a monotonia do cenário. Ainda mais incrível é digitalizar um pensamento desse, por hábito ou para dormir tranquilo. Não seria para compartilhar ou estimular alguém a executar, só colocar no papel para não ser traído pela memória. Quem sabe dessa forma teria possibilidade de detalhar no dia seguinte, se seria com veneno, bala, um punhal verde e amarelo ou um simples sumiço como no Ainda Estou Aqui. Nessa última opção seria fácil divulgar depois, via canhões nos grupos da internet, que as vítimas decidiram fugir e desaparecer porque fraudaram as urnas. Muita gente acreditaria, iria repostar e transformar em verdade.

Vamos reconhecer que não é todo mundo que tem coragem ou ousadia para digitalizar e expor os maus pensamentos, nem mesmo quando se pretende tentar o perdão ou anistia no confessionário. Tem deles tão cabeludos que, além de vergonhosos, merecem penitência pesada na lei dos homens e de Deus.

A digitalização de um pensamento é a prova inconteste do que se passa na mente da pessoa e, dependendo do propósito ou se a impressora tiver autonomia para fazer três cópias à revelia, pode deixar de ser um simples pensamento estranho e se transformar em um plano a ser executado.

Livre pensar, é só pensar, mas se digitalizar pode virar confissão de coisas que não seriam de Deus, nem da pátria nem da liberdade.

Sérgio Gondim, médico

 

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