STF: guardião ou protagonista da Constituição?
Quando um Poder se coloca acima dos demais, além da Constituição, o que se fragiliza não é o texto constitucional, mas a essência da democracia.
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O Supremo Tribunal Federal (STF) ocupa um lugar de inegável importância na estrutura da República, sendo, conforme dispõe a Constituição de 1988, o guardião da mesma. Deveria ser esse seu papel. Entretanto, nas últimas décadas — após a redemocratização, mas principalmente com o ingresso dos mais recentes ministros, alguns completamente sem limites —, segundo fala oportuna do ex-Ministro Marcos Aurélio, já deveriam estar em tratamento num divã — a Corte passou a assumir um papel cada vez mais proeminente na definição de rumos políticos, sociais e morais da nação.
Nesse processo, o Brasil presencia uma tensão crescente entre o ideal da democracia representativa e a atuação expansiva do Judiciário, em especial do STF. Não faltam reflexões como um tribunal constitucional, bastião das liberdades e da legalidade, seja protagonista de desrespeitar a Carta Magna que deveria proteger. Mas, afinal, qual o papel do STF?
O sistema político brasileiro é estruturado como uma democracia representativa, o povo exerce seu poder político por representantes eleitos — deputados, senadores, presidentes, governadores e prefeitos. Claro está que a função do STF não é legislar, tampouco governar, ou se comportar como dono do país, mas garantir a supremacia da Constituição, proteger nossos direitos fundamentais.
Entretanto, com a judicialização da política, o STF decide questões antes reservadas ao Parlamento e à sociedade civil. Tendência que se intensificou com a omissão do Legislativo de enfrentar temas complexos e impopulares, por isso entregando ao Judiciário responsabilidades de resolver impasses morais, políticos e administrativos, alargando-se a intromissão do STF.
O chamado ativismo judicial — quando o Judiciário atua além de seu papel constitucional — tornou-se marca de um STF expandido. Passou a legislar na prática, por meio de interpretações ampliadas da Constituição e decisões que criam normas jurídicas sem respaldo legal.
E exemplos não faltam: A criminalização da homofobia (ADI 26 e MI 4733), decidida em substituição à omissão do Congresso. Decisões sobre políticas públicas de saúde, segurança e meio ambiente. A condução de inquéritos próprios, como o das "Fake News" (Inq. 4781), sem a participação do Ministério Público como titular da ação penal. Práticas diárias deformadas se espalham, que colocam em xeque o princípio da separação dos Poderes (art. 2º da CF/88), já que o STF passou a atuar, simultaneamente, como legislador, executor e julgador.
Eis o paradoxo de uma deformação: É guardião ou violador das garantias individuais? O mais grave dessa expansão indevida é o enfraquecimento das garantias, colunas do Estado Democrático de Direito. Sobram práticas investigativas até fora do devido processo legal, e o STF, pasmem, exercendo o papel de vítima, investigador e julgador, fazendo censura prévia de publicações e perfis nas redes sociais, com base em conceitos genéricos como "ameaça à democracia". Quebra de sigilos e prisões preventivas alongadas, tantas sem fundamentação e em base de decisões monocráticas.
O ambiente é de total insegurança jurídica, devido à constantes mudanças de entendimento, conforme o contexto político. Amplia-se um paradoxo institucional: o órgão incumbido de proteger direitos é, segundo parte da doutrina e da opinião pública, o que mais frequentemente viola-os. Uma corte que perde seus freios? O STF não possui um órgão revisor superior — suas decisões são finais. Seus membros têm mandato vitalício, indicados pelo Presidente da República e aprovados pelo Senado, sem um sistema efetivo de responsabilização por abusos, cada vez mais evidentes.
Essa ausência de freios e contrapesos eficazes faz com que críticas à Corte sejam interpretadas como "ataques à democracia", criando um ambiente de autodefesa institucional e autorreferência. O resultado é uma superconcentração de poder num único órgão da República, que enfraquece a confiança pública e que desequilibra o sistema de pesos e contrapesos defendidos na Constituição.
Não é de se negar a importância do STF, de atacar a existência de um tribunal constitucional forte. O questionamento é a péssima postura institucional diante de uma sociedade que deveria exigir respeito aos limites constitucionais e às garantias individuais. Alguns de seus membros não compreendem essa envergadura. Para que o STF possa ser o respeitável guardião da Constituição, é necessário praticar os princípios constitucionais que o legitimam.
Quando um Poder se coloca acima dos demais, além da Constituição, o que se fragiliza não é o texto constitucional, mas a essência da democracia. O Brasil precisaria de um Judiciário independente, responsável, mas autocontido. Repita-se, autocontido, equilibrando a balança entre a proteção da ordem democrática e a preservação das liberdades individuais. A democracia e os nossos direitos fundamentais estão se tornando um terreno baldio sem controle. Talvez seja o tempo histórico da nossa pior versão constitucional.
Paulo Roberto Cannizzaro, escritor