"Deixai, oh vós que entrais, toda a esperança"
A verdadeira democracia deve ouvir não só a voz dos vivos, mas a dos que já morreram e a dos que ainda estão por nascer; deixem-os falar.

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Assim avisou Caronte - o barqueiro infernal - a Dante e Virgílio nas portas do Inferno. Assim também eu e minha geração deveríamos ter sido alertados já na maternidade, pois não entraríamos jamais no Paraíso.
Não por desígnios divinos, mas por maldições seculares; não por justa condenação, mas por injusta purgação; menos por falta de virtudes, mais por pueris atitudes; não por descrença no Deus cristão, mas por crença no demiurgo pagão.
Não sabíamos, entretanto, estava minha geração condenada pela ascensão de um falso líder. Destinados éramos a ver nosso país e nosso destino a ele vinculados de uma forma ou de outra. Desde 1989, sua rouca voz tem nos roubado o presente, nos apagado o passado e nos negado o futuro - o qual eterna potência e jamais ato.
Passam todos, mas ele fica. A culpa nunca dele é, mas dos que já não estão; ou dos que pouco ficaram; e até dos que ainda virão - mas dele e de sua turma jamais - mesmo após décadas de poder.
O nosso Mammon tropical, cujo nome representa cobiça e avareza, sempre no poder está. Direta ou indiretamente - tal qual Poseidon fustigando a nau de Ulisses - modifica o rumo do transatlântico verde e amarelo, todavia nunca à destra rota, mas sempre à sinistra - a qual tem Cila e Caríbdis a estreitar, ávidas de naufrágios.
Seu guia não é Virgílio - a razão - mas sua ausência; falta logos, sobra sofisma. Zeus metamorfoseou-se em touro para seduzir a jovem grega Europa, donde gerou-se um continente. A douta ignorância do Brahma de nove dedos em falso saber se transmuta, não para gerar nada, mas para tudo corromper.
E por ele apaixonam-se rasos sábios, ávidos que são por bênçãos do Daimon tupiniquim - pois acorrentados aos grilhões dos votos que os escravizam. Triste cena, na qual percebem a farsa, mas fingem acreditar, pois incapazes de deliberadamente perder um sufrágio.
Porém, tal qual alguns jornalistas e artistas, talvez sejam mesmo vítimas de uma amputação cognitiva, esta germinada há séculos por semeadores da negação da realidade, tal qual Rousseau, Kant, Marx, Lênin, Gramsci e tantos outros. Sementes que encontraram terras adubadas pela desolação da dureza da vida humana e pela falsa esperança no paraíso celeste ainda na Terra; esperança essa embalada pelo belo canto de Sirena - metade mulher e metade pássaro -, a qual se não impedida por cera nos ouvidos qual Ulisses, levará a inevitável voo ao abismo intelectual.
Quando já avançados nos anos, entende-se o erro ou a submissão; porém desolador é ver mancebos ainda imberbes repetir o simulacro - incapazes que são de ver o real ou de perder o poder em nome da verdade. Preferem antes a desonra que a guerra, e as duas os terão - como avisou Churchill. O qual, aliás, já alertava: "Jovens, não vos deixei iludir pelo sucesso pessoal ou pela popularidade! Cometerei toda sorte de enganos, mas, se fordes francos e generosos ao mesmo tempo que ardentes, não podereis causar mal ao mundo ou mesmo decepcioná-lo".
São eles a última fortaleza contra a perda total de mais uma geração, todavia sem a arma mais poderosa - a linguagem - serão terra arrasada. Esta não virá espontaneamente, mas via poetas, e deve ser buscada individualmente, incansavelmente, impiedosamente e incondicionalmente. Os seus professores - em sua maioria - não a ensinarão, pois nem querem e nem a possuem. Tanto que outro gorducho inglês, G. K. Chesterton, profeticamente alertou: "Os poetas são bons para a humanidade e ruins para suas famílias, já os professores - aqueles pedantes - são bons para suas famílias e ruins para a humanidade.
E para terminar com ele mesmo - o qual foi considerado o mais cortês dos homens, pois ao ceder seu lugar no metrô às mulheres ou idosos, estava acomodando não uma, mas três pessoas, tamanho o seu volume - suplico que se atenham aos poetas ou grandes homens já mortos, pois não mais corruptíveis.
Essa é a verdadeira democracia, a qual lastreada na tradição erguida pelos acertos e erros dos nossos ancestrais que nos legaram um belo tempo - este agora sob ataque dos que lutam por um mundo melhor destruindo-o. A verdadeira democracia - segundo Chesterton - deve ouvir não só a voz dos vivos, mas a dos que já morreram e a dos que ainda estão por nascer; deixem-os falar.
ERMANO MELO,oftalmologista