Gustavo Krause: O redescobrimento do Brasil
Os estudiosos da evolução histórica do país-continente divergem sobre quase tudo ao interpretar o passado e lançar olhares quanto ao nosso futuro

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Quando fui aprovado no exame de admissão no Colégio Padre Felix (espécie de vestibular para ingressar no “ginasial”), recebi um presente inesquecível de minha mãe: o livro História do Brasil para Crianças de autoria do jornalista, escritor, dramaturgo, político e membro da Academia Brasileira de Letras, Viriato Correia (1884-1967), com alguns conselhos que me foram úteis para a nova fase da educação formal e para vida inteira.
Ela foi incisiva: nada de decoreba; você não é um papagaio. Pense! Não se limite a estudar, apenas nos livros adotados pelo colégio; pergunte, não tenha receio da ignorância, aprenda duvidando; consulte o professor, os dicionários, as enciclopédias; mantenha acesa a curiosidade (não esqueço a tonalidade azul da coleção “O Tesouro da Juventude” nele inserido o “O livro dos porquês”); convivi com os personagens de Monteiro Lobato; curti as edições do “Almanaque Tico-Tico”, a primeira e a mais longeva revista para o público infanto-juvenil no Brasil (1911 e editada por 56 anos); os saberes maternos me apresentaram a Castro Alves, José de Alencar, Machado de Assis, Eça de Queiroz, “Os miseráveis” de Victor Hugo, romance que me marcou profundamente.
Pois bem, o resto ficou por minha conta. Sou leitor raso, mas um curioso atrevido. E foi este atrevimento que me levou a prestar atenção ao episódio do descobrimento (ou “achamento”) do Brasil. “A pátria amada” nasceu controversa: resultou da intencionalidade estratégica do reino português em ampliar rotas comerciais e domínio territorial do além-mar ou foi mera casualidade decorrente de fatores climáticos (a calmaria)? Outra questão polêmica resultou da precedência dos navegadores espanhóis (Vicente Pinzón e Diego de Lepe) que costearam o litoral brasileira entre Janeiro e março de 1500 antes, pois, da esquadra de Cabral. Isto rendeu nos anos 50, assinala Eduardo Bueno, um rancoroso “nacionalismo retroativo”, contrapondo historiadores lusos e espanhóis (A Viagem do Descobrimento – Um olhar sobre a expedição de Cabral. Rio de Janeiro: Edição Brasil, 2016)
Coube ao grande historiador Capistrano de Abreu (1853-1927) sepultar a questão em 1900 ao afirmar que o “descobrimento sociológico” do Brasil coube aos portugueses que, lentamente, integraram a terra ao império ultramarino lusitano, demarcando a era das navegações (século XV ao século XVII), o ponto de partida do processo histórico da globalização.
Mal sabiam que o anúncio “terra à vista” era um território gigante de solo fértil e “águas infindas”, segundo Caminha. Não atendia interesses imediatos do apetite mercantilista. Portugal, então, terceirizou o processo colonizador. Donatarias, Governo-Geral que não pouparam a natureza exuberante em ciclos econômicos, deixando um rastro de destruição.
Os estudiosos da evolução histórica do país-continente divergem sobre quase tudo ao interpretar o passado e lançar olhares quanto ao nosso futuro, porém convergem no que diz respeito à diversidade cultural e aos contrastes que marcam a fisionomia socioeconômica do Brasil.
Neste sentido, admitindo, de um lado, a persistência dos contrastes e as falhas estruturais, a exemplo da desigualdade social, de outra parte, o Brasil revela potencialidades capazes de lhe assegurar um excepcional protagonismo na economia do século XXI.
Cabe observar os indicadores de um século atrás (meados da década de 20): população 33 milhões de habitantes; 80% viviam no campo e 70% eram analfabetos; a expectativa de vida, 35 anos; mortalidade infantil registrava a morte de mais de 160 crianças antes de completar 1 ano. Por sua vez o PIB per capita, em valores de hoje, era de US$ 2.400, ancorado numa indústria incipiente e na monocultura do café.
No Brasil atual, a expectativa de vida se aproxima dos 80 anos; a mortalidade infantil chega a 10,4 por mil nascidos: o analfabetismo, apesar da precariedade do sistema educacional, gira em torno de 5%; a população urbana representa 88% do total da população; o PIB per capita atual é de US$ 23,2 mil.
Importante salientar que o Brasil dispõe de moeda sólida e uma democracia resistente que enfrentaram e superaram crises superpostas. A propósito, esclareço que não estou contaminado pela “síndrome de Poliana” muito menos afetado pelo personagem do célebre Voltaire na obra “Cândido ou o Otimismo”. Estas constatações servem para apontar em direção ao futuro e a necessidade de um redescobrimento do Brasil. Desta vez, com o que vá mais além e mais fundo do que imaginou Caminha.
Neste sentido, com a autoridade de um dos pioneiros da bioeconomia, agricultura e alimentos na União Europeia e membro fundador, em 2009, do primeiro Comitê Consultivo de Bioeconomia na Alemanha, Christian Patermann (1942) em novembro de 2019 (Guia Exame de Sustentabilidade) assim se referiu ao Brasil: “O reservatório de recursos biológicos do Brasil é imenso. O país tem praticamente tudo. A questão é como explorá-lo de modo sustentável e eficiente”.
De fato, aqui estão sete biomas, verdadeiros tesouros não somente para o equilíbrio ecológico do planeta, sobretudo pelo que unindo o conhecimento tradicional com avanços científicos e tecnológicos oferecem um “capital” adicional à natureza na descoberta de princípios ativos de fármacos e na ampliação revolucionária da sociobioeconomia.
O redescobrimento do Brasil é um futuro que chegou ou está batendo na porta, por exemplo, da nossa biodiversidade objeto do consórcio Genômica da Biodiversidade Brasileira (GBB), liderado pelo Instituto Chico Mendes da Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e o Instituto Tecnológico Vale Desenvolvimento Sustentável (ITV).
Por sua vez, a matriz energética brasileira á uma das mais limpas (45% de fontes renováveis) do mundo e será a base do hidrogênio verde; a nação produtora de alimentos responderá ao furor tarifário com mais produtividade e competitividade; e a “terra à vista” dos colonizadores não distinguiram “as terras-raras” (17 elementos químicos), insumos essenciais para uso em produtos de avançada tecnologia. O Brasil detém a segunda maior reserva mundo desses metais que têm um papel estratégico na economia mundial e na soberania tecnológica.
Faltam, porém, juízo e espírito público.
Gustavo Krause, ex-governador de Pernambuco