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Nem 61 socos são suficientes para silenciar inimigos da Lei Maria da Penha

O machismo estrutural, que leva a desfechos como a cena do espancamento, que de tão horripilante foi borrada na maioria das transmissões,

Por GISELE MARTORELLI Publicado em 08/08/2025 às 0:00 | Atualizado em 08/08/2025 às 10:46

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Sessenta e um socos em 34 segundos são quase dois socos por segundo, todos desferidos na face de Juliana Garcia Soares pelo namorado Igor Eduardo Pereira Cabral. Mais socos se seguiriam, não tivesse o porteiro Manoel Anésio chamado imediatamente a polícia, que atendeu com rapidez nem sempre usual. O desfecho possível, se a interrupção não houvesse ocorrido, seria a morte e não um rosto que precisou ser reconstruído após quatro fraturas graves.

Dois fatores empurraram este caso específico para o conhecimento e repúdio da opinião pública: a violência extrema com que o ataque foi praticado e ter sido registrado em vídeo, possibilitando visualizar a dimensão real da covardia do agressor contra a vítima indefesa.

Poderíamos acrescentar, ainda, mais um elemento de tração na exposição do caso por meio dos veículos de imprensa e redes sociais: o cenário - condomínio de alto padrão na Zona Sul de Natal (RN) - e os personagens, jovens adultos brancos pertencentes à classe média alta.

Ainda que o episódio seja profundamente revoltante, isso não impede que críticos da Lei Maria da Penha, promulgada em 7 de agosto de 2006, voltem a se manifestar. Especialmente durante o Agosto Lilás — mês dedicado à conscientização e ao enfrentamento da violência contra a mulher — discursos negacionistas seguem tentando desmerecer esse importante instrumento legal, baseando-se em argumentos tão improváveis quanto infundados diante do peso dos números.

O crime - que pode ser tipificado penalmente como tentativa de feminicídio, lesão corporal gravíssima e violência doméstica (com base na Lei Maria da Penha) - vai engordar os dados sobre a violência contra mulheres e feminicídio no Brasil, que não são insignificantes.

No período de fevereiro de 2024 a fevereiro de 2025, cerca de 37,5% das brasileiras, o equivalente a 27,6 milhões de mulheres sofreram pelo menos uma violência física, sexual ou psicológica cometida por parceiro íntimo. Em 2024, uma mulher foi assassinada por feminicídio a cada 17 horas.

No mesmo ano, ocorreram 87.545 registros de estupros, o que dá uma média de 196 casos por dia. Se fizermos um recorte racial, veremos que dentro da vulnerabilidade existe ainda outra vulnerabilidade: 60,4% das vítimas assassinadas por feminicídio eram pretas ou pardas.

Sessenta e um murros na cara impressionam pela quantidade, velocidade e repetição do ato, mas não podem ser simplificados como um "surto claustrofóbico", como alegou a defesa do perpetrador. Quando se busca uma explicação racional para o exagero da ignomínia, tende-se a naturalizar agressões de "menor monta": um tapa nas costas, um puxão pelo braço, um pulso torcido.

Toda e qualquer violência de gênero passa, necessariamente, pelo machismo que julga as mulheres como seres inferiores. Corpos sobre os quais os homens detêm poder e posse. Assim é também com outros tipos de violência, a exemplo da patrimonial e moral, praticamente indetectáveis nas tais estatísticas.

Na escalada que leva à morte ou a lesões incapacitantes - exemplificada pela própria Maria da Penha Maia Fernandes, paraplégica depois de ter sido alvejada pelo marido - uma conspiração de silêncio gera uma "zona de invisibilidade", tecnicamente chamada de subnotificação.

As razões para calar as vítimas são várias e, entre elas, estão aquelas também utilizadas para desmerecer a Lei Maria da Penha como "destruidora de famílias", "instrumento de vingança pessoal" e "fragilidade da palavra de quem denuncia".

Os argumentos ideológicos fazem parte desse pacote que visa deslegitimar a luta das mulheres por seus direitos como seres em desigualdade social, histórica e cultural. Eles se baseiam na falsa simetria de que "a lei deveria ser igual para todos, independente de gênero" e do feminismo como uma arma de destruição apontada para todos os homens. De subnotificação em subnotificação, um soco se transforma em 61 golpes, um dedo puxa o gatilho, uma faca é empunhada.

Campanhas de conscientização são importantes no combate à cultura do silêncio e da naturalização da violência. É preciso desconstruir a falácia de que se a agressão não for "excessiva" ou, no mínimo, gravada em vídeo para todos verem, o abusador merece uma segunda chance.

Grupos reflexivos com foco psicossocial e educativo, voltados para homens autores de violência doméstica, cumprem uma função relevante — afinal, o artigo 35, inciso V, da Lei Maria da Penha determina "a criação de centros de educação e de reabilitação para os agressores". Mas fica a impressão de que ainda é preciso fazer muito mais e bem mais cedo. O machismo estrutural, que leva a desfechos como a cena do espancamento, que de tão horripilante foi borrada na maioria das transmissões, só será extirpado quando o respeito for item obrigatório na formação básica do gênero masculino.

Gisele Martorelli, advogada

 

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