Jones Figueirêdo Alves: As breves vidas que terminaram infinitas
Estatísticas de vítimas de feminicídio são alarmantes ao tempo que alcança atualmente, de forma predominante, pessoas muito jovens

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A passagem de Cristo feito homem na terra foi brevíssima, quando aos 33 anos foi crucificado e morreu para a salvação do mundo.
À semelhança disso, como um fato fundante do cristianismo, sempre me impressionaram esses breves tempo de vida, à conta dos anos que foram suficientes como exemplo de perenidade no legado oferecido. Significa dizer, nessa perspectiva, que a vida se torna infinita não por um maior tempo vivido, mas pelo que ela fecundou no próprio tempo que lhe foi destinado. A importância factual da pessoa por uma admirável jornada de vida, em seu percurso existencial, longo ou não o caminho.
O tema aqui posto convoca fatos recentes onde as estatísticas de vítimas de feminicídio são alarmantes ao tempo que alcança atualmente, de forma predominante, pessoas muito jovens. O Atlas de Violência 2025 revela que a média nacional chegou a 10 mulheres mortas por dia no país, “contrariando a tendência de redução dos homicídios em geral observada desde 2018”.
Afigura-se a epígrafe de vidas interrompidas, restando saber, contudo, tratou-se ou não de vidas inteiriças pelo suporte fático dos seus valores essenciais, inspirando e ensinando outras pessoas por seus exemplos edificantes. Assim, o impacto de uma vida não é medido pela sua duração, mas pela intensidade com que foi vivida, pelas ações realizadas, pelas ideias compartilhadas e pelas pessoas tocadas ao longo do caminho.
Na música clássica, os compositores austríacos Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) e Franz Peter Schubert (1797-1828), sempre presentes, morreram precocemente, aos 35 e 31 anos, em respectivo. Mozart produziu 623 obras entre sinfonias, concertos, músicas de câmara e óperas e Schubert também cerca de seiscentas peças musicais, como óperas, sonatas e sinfonias, incluindo a "Sinfonia Incompleta". Na música contemporânea, Amy Jade Winehouse (1983-2011) e Kurtin Combain (1967-1994), compositores, musicistas e cantores, morreram aos 27 anos.
Na pintura, Vicente Van Gogh (1853-1890), cuja notável obra influenciou o expressionismo, faleceu aos 37. Autores de “Van Gogh, The Life”, os biógrafos Steven Naifeh e Gregory White Smith (ambos ganhadores do prêmio Pulitzer) sustentam que ele teria sido morto, por acidente, com um tiro disparado por Rene Secretan e outro garoto, enquanto pintava em um campo de trigo. Mais tarde, adulto, Rene teria admitido o fato. A causa de sua morte não foi suicídio. O artista plástico italiano modernista Amedeo Clemente Modigliani (1884-1920), figurativo com seus retratos estilizados, uma pintura exótica de rostos femininos, faleceu aos 35.
Na literatura, o escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924), consagrado por sua obra inacabada “O Processo” (1915), morreu um mês antes de completar 40 anos. O teólogo francês Blaise Pascal (1623-1662), também faleceu antes dos 40 anos. Seus “Pensamentos” sobre a condição humana perduram a partir da célebre assertiva de o coração ter suas próprias razões que a razão desconhece. O escritor argelino Alberto Camus (1913-1960), naturalizado francês (Prêmio Nobel de Literatura, 1957), que influenciou Kafka; morreu aos 47, vítima de um acidente de carro.
Na política, três grandes estadistas tiveram vidas breves:
(i) O imperador francês Napoleão Bonaparte (1769-1821), morreu aos 52 anos, sepultado no Museu das Armas, no “Les Invalides”, em Paris. O Código Civil francês por ele promulgado em 1804, mais conhecido como “Código Napoleônico”, tornou-se um marco na história do direito, influenciando os códigos civis de diversos países. Consolidou princípios como a igualdade perante a lei, a liberdade individual e o direito à propriedade privada.
(ii) Também aos 52 anos, Pedro I, conhecido como Pedro, o Grande (1672-1725), foi o Czar da Rússia de 1682 até à formação do Império Russo em 1721, continuando a reinar como imperador até sua morte, em São Petersburgo, cidade que fundou às margens do Mar Báltico. Ele abriu a Rússia ao Ocidente.
(iii) John Fitzgerald Kennedy (1917-1963), morreu aos 46, assassinado em Dallas. Presidente dos Estados Unidos (1961-1963), simboliza a época de uma nova América.
Luís IX (1214-1254), rei de França e santo, canonizado em 1297, considerado modelo de monarca medieval e símbolo da Idade Média, morreu aos 40 anos de idade.
Um dos maiores doutores da Igreja, o dominicano São Tomás de Aquino (1225-1274), morreu aos 49 anos e mantém-se referência maior para a moderna filosofia, com seus trabalhos filosóficos de teologia, como principal expoente da escolástica. O tomismo constitui o diálogo que concilia a fé cristã com a razão.
Na filosofia, outros exemplos situam vidas interrompidas por mortes precoces. Em outubro de 1855, o filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard (1813-1855), fundador da filosofia existencialista, sofreu uma queda na rua e foi hospitalizado, com paralisia nas pernas. Recusando-se a receber assistência religiosa, faleceu quarenta dias depois, em Copenhague, em 11.11.1855, aos 42 anos. Simone Adolphine Weil (1909-1943) foi uma filósofa francesa que se tornou operária da Renault para escrever sobre o cotidiano dentro das fábricas. Faleceu aos 34 anos. Ela é a mística da contemplação de Deus na miséria humana.
Todos eles citados são pessoas referenciais de extrema força simbólica e morreram cedo. Vidas interrompidas que, em instante súbito, desapartam o que viria existir, contrariando o ritmo essencial e ingente, quando mais vida ainda estaria à frente. Suas mortes apenas podem-lhes tirar senão a vida material, quando seus legados os tornaram, de logo, vidas pulsantes que permanecem.
“O tempo é quando”, reza o poema.
Jones Figueirêdo Alves é Desembargador Emérito do TJPE. Advogado e parecerista.