Precatórios, populismo fiscal e estado de coisas inconstitucional: a PEC 66/2023
De tempos em tempos, os "gênios" da macroeconomia cogitam refrear os gastos com os precatórios judiciais ...................................

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Como não há exorcismo à prova de falhas, o monstro não é aprisionado como merece e sai no armário para voltar a assombrar. É exatamente o que se faz agora com a PEC 66/2023.
O nosso sistema constitucional de precatórios vem sofrendo ingerências seguidas que prestigiam o devedor público e sacrificam o credor privado. Esta é a realidade. Foi como ocorreu com as Emendas 62/2009, 94/2016 e 99/2017.
A mais nova "PEC do Calote", como tal fórmula costuma ser apelidada, retoma o receituário de perpetuação da dívida pública judicial. Retira os precatórios do limite de despesas primárias da União a partir de 2026, cria critérios de pagamento escalonado para os entes subnacionais e a autorização da renegociação de dívidas previdenciárias com o Governo Federal.
Para o leigo entender: o precatório é uma requisição de pagamento expedida pela Justiça para cobrar de entes públicos valores devidos em razão de condenação judicial definitiva (também chamada de irrecorrível). Pode assumir natureza alimentar (quando provêm de ações judiciais vinculadas a salários, pensões, aposentadorias ou indenizações) ou não-alimentar (outros temas como desapropriações e tributos).
A PEC 66 é um desastre porque compromete credores atuais e futuros. Permite que o ente público adie o pagamento do precatório, utilizando recursos obtidos com a arrecadação tributária. Restringe autoritariamente pagamentos e gera uma dívida impagável, transformando o direito adquirido em crédito simbólico. Sua inconstitucionalidade é latente.
Se a proposta vingar, os entes públicos poderão endividar-se à vontade e não quitar in totum as suas dívidas judiciais produtos de decisões definitivas. Aliás, o STF já admitiu violações de direitos e garantias dos credores de precatórios ao analisar as ADI's 4.357 e 4.425, riscando trechos das Emendas 113/2021 e 114/2021 que limitavam o pagamento de tais verbas.
Ao ambicionar o impensável e estipular prazos estendidos para o parcelamento de débitos previdenciários, a PEC 66 requenta, em certa amplitude, discussões já preclusas no STF, vulnerando a uma só voz: 1) os princípios da razoável duração dos processos, do acesso à Justiça, da separação de Poderes e da intangibilidade da coisa julgada; 2) por ser uma "PEC moratória", os erros de premissa de outras PEC's; 3) o princípio da isonomia (artigo 100 da Constituição), já que haverá condições de pagamento mais gravosas aos credores de entes municipais com um maior estoque de precatórios ou menor receita corrente líquida do que para os credores de entes com maior solvência.
O precatório é um dever de Estado e não um favor que ele presta ao credor. O adiamento de seu pagamento abastece, de quebra, um mercado paralelo de cessões, que não raras vezes opera com deságios pesados e faz aflorar a sensação de descrédito da Justiça, cujas sentenças definitivas ficarão submetidas a eficácia condicional absurda, coisa que a Constituição nunca quis fazer. Tudo certo para dar errado.
Se o problema é de solvência, que se combata a sonegação. Que se podem os excessos, trens da alegria e outras práticas nefastas. Que se combata a corrupção. Que se construa uma gestão pública eficaz, menos propensa à litigiosidade. Que se repense a cultura dos recursos sistemáticos contra causas, em tese, perdidas. O remédio é para curar o paciente, não para matá-lo.
A PEC 66 causa indesejável "pré-estado de coisas inconstitucional", a exemplo do que perdura com o sistema prisional. Reúne os mesmos ingredientes: (a) violação massiva de direitos; (b) omissão prolongada das autoridades; (c) práticas inconstitucionais; (d) ausência de medidas adequadas; (e) problema complexo que demanda intervenção coordenada; e (f) risco de congestionamento do sistema judicial, como pontuado por Daniele Naves (Migalhas, 21/07/2025).
De tudo, porém, há de ecoar mais forte o grito do bom senso: não ao calote nos precatórios e sim à autoridade da Constituição. Com a palavra, o Congresso. Na sua recusa ou, o que seria mais grave, indiferença, que nos acuda Thêmis.
Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado