Ingrid Zanella: PEC 66/2023, inadimplência não é política pública
A OAB Pernambuco, ao lado do Conselho Federal da Ordem, posicionou-se de maneira oposta a esse movimento: essa proposta é inconstitucional e injusta

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Imagine um cidadão que, após perder uma ação na Justiça, simplesmente decidisse que vai pagar a dívida quando e como quiser. Que criasse regras próprias, alterasse os prazos, e ainda reduzisse os juros que deve. Que dissesse: “vou pagar, mas só o que eu achar justo, e só quando for conveniente”. Essa pessoa, qualquer um de nós diria, está brincando com o Judiciário. E, no entanto, é exatamente isso que a Proposta de Emenda à Constituição 66/2023 permite que o próprio Estado faça. Um dos maiores ataques à segurança jurídica e ao Estado de Direito nos últimos anos.
A proposta em questão representa a institucionalização de um calote. O texto propõe que os municípios e, com as mudanças em curso na Câmara dos Deputados, também estados e a União, possam limitar o pagamento de precatórios com base em sua receita corrente líquida. Na prática, isso significa permitir que entes públicos escolham quanto pagar, por quanto tempo pagar, e como pagar dívidas que já foram reconhecidas pela Justiça.
Estamos falando de decisões judiciais definitivas, transitadas em julgado. De credores que muitas vezes esperam há décadas por aquilo que lhes é devido: aposentadorias, indenizações, salários, direitos trabalhistas. E, agora, a PEC 66/2023 quer lhes dizer que o tempo da Justiça não vale. Que a sentença é apenas uma sugestão. Que o direito não é mais um compromisso, é um número a ser renegociado nos gabinetes da crise fiscal.
A OAB Pernambuco, ao lado do Conselho Federal da Ordem, posicionou-se de maneira oposta a esse movimento: essa proposta é inconstitucional e injusta. Ela agride e desrespeita os pilares centrais do nosso ordenamento jurídico: a coisa julgada, a separação dos poderes, o direito de propriedade e a isonomia entre os jurisdicionados. Ela também despreza a jurisprudência firmada do Supremo Tribunal Federal, que já declarou inconstitucionais mecanismos semelhantes por motivos absolutamente evidentes.
Diante da gravidade da proposta, a OAB Nacional emitiu uma Nota Técnica assinada pelo presidente Beto Simonetti e por todos os presidentes das seccionais da OAB no país. O documento, enviado aos parlamentares, expõe com precisão os vícios formais e materiais da PEC 66/2023, demonstrando que sua aprovação representaria a repetição de medidas já consideradas inconstitucionais. Uma manifestação que, além de jurídica, é também política, institucional e histórica. Porque é papel da OAB, em todos os seus níveis, proteger a Constituição quando ela está sob ameaça.
No âmbito local, a nossa OAB Pernambuco também cumpriu seu dever e enviou ofício aos nossos senadores pernambucanos, solicitando posicionamento contrário à PEC. No documento, reiteramos que não é admissível transformar inadimplementos históricos em política de Estado, nem legitimar a violação de direitos sob a justificativa de equilíbrio fiscal. A atuação da OAB-PE tem sido firme e técnica, inegociável quanto à defesa da Constituição. Esperamos da bancada pernambucana no Senado a mesma postura: compromisso com a legalidade, com a Justiça e com os credores que esperam, já há anos, que suas decisões judiciais sejam cumpridas.
Sob a justificativa de aliviar cofres públicos, sugere-se com essa PEC a criação de um sistema cruel e desigual. Cruel porque penaliza justamente os cidadãos que venceram o Estado na Justiça e agora são forçados a implorar o cumprimento de suas sentenças. Desigual porque os critérios da PEC tratam de forma distinta credores de municípios com maior ou menor capacidade fiscal, criando duas classes de cidadãos perante o Judiciário. E, ainda, é opaco porque reduz a previsibilidade e esvazia o conteúdo das decisões judiciais. Um processo que mina a confiança na própria justiça.
Não é papel de uma Constituição nem de um Parlamento reescrever sentenças. A PEC 66/2023 viola o pacto civilizatório constitucional. E toda vez que esse pacto é violado, é a cidadania que sofre. Enquanto a proposta avança, cabe à advocacia resistir. Defender a ordem constitucional não é uma opção para a OAB, mas um dever. É também um dever moral com os milhares de brasileiros e brasileiras que esperam há anos que o Estado cumpra aquilo que a Justiça já mandou fazer.
Quem ganha quando a Justiça perde? Quando uma sentença é tratada como sugestão, o Estado se apequena e a cidadania é sacrificada. Não há democracia possível onde a inadimplência é transformada em política pública. Não devemos aceitar que sentença judicial vire papel de gaveta. A Justiça não pode ser parcelada porque o direito não se não se adia, não se rasura. Sentença não é sugestão.
Ingrid Zanella, presidente da OAB-PE