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Dayse de Vasconcelos Mayer: Flertando com a liberdade, uma jornada poética

Pobre ex-presidente! Cada vez mais equivocado. Ainda não percebeu que a verdadeira liberdade está com Melania, a primeira-dama dos EUA

Por DAYSE DE VASCONCELOS MAYER Publicado em 27/07/2025 às 6:03

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O flerte é um vocábulo démodé, embora tenha atravessado os séculos com o mesmo charme e exotismo. Flerta-se de diferentes jeitos. O sociólogo italiano Francesco Alberoni usa uma palavra mais atual: “enamoramento”. Num dado momento, a paixão arrefece e aí descobrimos que o verbo transitivo admite rostos múltiplos sem descaracterizar o conceito.

Na década de 90, estive em Casablanca com uma amiga. Mal chegamos, brinquei de adolescente na tentativa de identificar o lugar onde Bogart (Rick) e Bergman (Lund) se encontraram. Descobri que sequer havia uma foto dos protagonistas de “Casablanca”. Por acaso, encontramos um intelectual francês que foi demasiado perspicaz, felino e arguto em seu comentário, após a verbalização do nosso intento: “Siga o flerte”.

Mas a verdadeira palavra que nos importa nesta crônica é “liberdade”. Há poucos vocábulos com tanta versatilidade. Logo percebemos que toda liberdade tem um custo e uma gradação. Mesmo abrangendo diferentes configurações, todas elas se entrelaçam formando um amálgama.

Iniciamos pela frase recente de Bolsonaro publicada pela Folha de São Paulo (18.07): “Graças a Deus o Trump foi eleito, podemos sonhar aqui no Brasil em restabelecer nossa liberdade. Não temos mais liberdade”.

Pobre ex-presidente! Cada vez mais equivocado. Ainda não percebeu que a verdadeira liberdade está com Melania, a primeira-dama. O diálogo que registramos corrobora a afirmativa. Ao regressar do seu gabinete, Trump disse à esposa: Sabes, querida, acabei de falar com Putin. Tivemos uma excelente conversa. E Melania responde: “A sério? Acabaram de bombardear outra cidade”. No dia seguinte, Trump anuncia o envio de mísseis Patriot para a Ucrânia. O diálogo, registrado pelo jornal Público, por Graça Castanheira, revela que a bela eslovena sabe, ao cair da noite, tirar partido da liberdade de influência na política planetária.

Mas decidimos abandonar a política e seguir a poesia.. Iniciamos por Florbela Espanca: “Quero o pão da vida e o vinho da alegria. Mas quero a liberdade acima de tudo”. Eis a liberdade sem travões ou empecilhos, apenas dependente da nossa vontade. Tal não ocorreria com a poesia ucraniana onde ela se revela um mito, lenda ou alegoria. Ela deixa assente a ideia de que é preciso olhar os horrores que se ocultam nas sombras da liberdade. A leitura de Shevchenko e Zhadan confirma essa ideia. Nesse último, lemos: “Música além do muro do cemitério/Flores que crescem dos bolsos das mulheres/crianças que espiam nas câmaras da morte”. Logo intuímos que a guerra garatuja a felicidade, infertiliza o solo, impõe mudanças em nossas escolhas e deixa restolhos permanentes de sangue, morte e inquietude.

Miguel Torga, escritor português que focou a liberdade em seus contos e poemas, escreveu: “Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino”. Paul Éluard igualmente registra: “E ao poder de uma palavra/ Recomeço minha vida/Nasci para te conhecer/ E te chamar Liberdade.

Logo atinamos que a liberdade é uma palavra rica de espantos. A primeira surpresa surge de três indagações: A liberdade existe? É possível viver uma fração de liberdade ou ela só existe se for inteira? Foi Blaise Pascal que assegurou que “todos os problemas da humanidade derivam da incapacidade do homem de ficar sentado, sozinho, num quarto”. Nesse caso, ser livre imporia ao sujeito a necessidade de vencer a solidão, o vazio e o tédio existencial. Isso é possível? Existe liberdade no interior do homem que se isola? Possivelmente, ainda que no pensamento sabotado se enraíze o sentimento inerente ao desemparo.

Fernando Pessoa não esqueceu a liberdade no poema com o mesmo nome. Nele o bardo expõe a liberdade como não sujeição às regras sociais: Aí que prazer /Não cumprir um dever, /Ter um livro para ler/ E não o fazer! Mia Couto escreveu “O perfume” texto contido no livro “Histórias abensonhadas” onde é possível sentir a liberdade até mesmo na invenção das palavras ou no alheamento visível às regras ortográficas e à norma linguística. Afinal, como dizia Heidegger, “a linguagem é a casa do ser”.

Uma conclusão, talvez extravagante, nos acossa: a liberdade tem a cor azul. Assim diria Ives Klain – o mestre do azul. Igualmente Van Gogh na tela “Noite estrelada”.

As mulheres também exaltaram o azul em suas telas. Foi o caso de Georgia O’Keeffe em seu quadro “Abstração Azul” e Mary Cassat na ´pintura “Menina em uma poltrona azul”. Há uma explicação científica para essa conclusão: O azul é uma cor primária – não pode ser obtida pela mistura de outras cores. Essa pureza do azul – embora com diferenciação nos tons – confere à liberdade o atributo de virgindade, inocência, castidade. Nesse caso, ela também seria absoluta e autônoma, algo contestável.

Independentemente da pintura em azul, Frida Kahlo tentou viver a liberdade em todos os períodos da sua vida: rompeu normas e rejeitou padrões de beleza; retratou sofrimentos físicos que ela própria padeceu; viveu sua bissexualidade com total indiferença pelos costumes e regras sociais. Finalmente, tentou convencer o mundo de que era tão livre que poderia deixar a vida aos 46 anos com um simples bilhete: “Espero alegre la salida – y espero no volver jamás”. Estava de fato a confessar a sua contradição e incongruência. Afinal, a liberdade é, acima de tudo, coragem e audácia para viver e enfrentar os infortúnios e as adversidades que a vida impõe. Essa incapacidade de ser livre e viver poderia ser encontrada em Nietsche, o filósofo alemão que brigou com o compositor Wagner, com quem mantinha uma grande amizade, por discordâncias ideológicas e políticas.

Atormentado com as ideias sobre o “bem e o mal” se isolou em seu quarto e escutou o relinchar de um cavalo. Abriu a porta e percebeu que o animal estava sendo açoitado de forma doentia. Enraivecido e bradando contra a maldade humana, enlouqueceu ao ver o sangue descendo farto pelo animal. No auge do desespero, rangendo os dentes e proferindo blasfêmias contra o algoz, perdeu o resto de liberdade que ainda restava.

Michel Foucault, autor de “História da loucura”, “Vigiar e punir” e “Microfísica do poder” jamais se isolou num cubículo. Escondeu-se atrás de máscaras infindas, esgueirou-se pelas esquinas e pelos espectros do submundo das drogas na tentativa de encontrar a liberdade. Acabou sentindo o prazer do flerte com a morte por meio de reiteradas tentativas de suicídio. Entre 1977 e 1978 esteve no Recife para ministrar um curso. Em nenhum momento falou de liberdade. A sua obsessão era pela “verdade e pela coragem de viver”, o que parece, de fato, contraditório e insensato.

Essas considerações significam que a liberdade só permanece incólume em nosso interior? Será que ela não acabaria se exaurindo por asfixia e clausura? Assim diriam os agnósticos da liberdade. Os que aceitam a liberdade como uma utopia destinada a envernizar as constituições e dourar a democracia.

A releitura de Croce lançou uma derradeira ideia. O filósofo reforça o axioma de Hegel: “Toda história é história da liberdade”. É a história do nascer, do crescer, do fazer-se adulta e da própria ética e moral da humanidade. Aqueles que afirmam o contrário, repetiriam as palavras de Jesus: “Merecem perdão porque não sabem o que fazem”. Cecília Meireles confirma essa ideia num verso: ”aceita-me apenas convertida em sua natureza: plástica, fluida, disponível/...em constante solilóquio. /Sem exigências de princípio e fim/ desprendida de terra e céu”.

Dayse de Vasconcelos Mayer é doutora em ciências jurídicas e políticas

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