Carlos Sant’Anna: Soberania pero no mucho
Quando exercida com responsabilidade, soberania fortalece a diplomacia. Quando usada de forma seletiva, transforma-se em hipocrisia internacional

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Soberania é a autoridade suprema de um Estado para decidir sobre seus próprios assuntos, dentro de seu território, e para representar-se internacionalmente com independência. No plano das relações exteriores, soberania significa o direito de um país tomar decisões de acordo com seus próprios interesses, ainda que essas decisões contrariem vontades alheias ou desagradem nações amigas. Esse princípio rege a diplomacia moderna e os sistemas multilaterais. Mas, como todo poder, ela traz também consequências.
O Brasil já exerceu sua soberania em diversas ocasiões, com impacto geopolítico real. O caso mais recente é o recebimento de navios iranianos em portos nacionais, contrariando interesses americanos. O governo federal também decidiu não nomear, por meses, o embaixador brasileiro para os EUA no início do atual mandato presidencial, em uma sinalização diplomática clara. Outro exemplo: o aumento das alíquotas de importação de produtos industrializados chineses, com impacto direto em empresas brasileiras que dependem dessas importações. Todos esses são atos soberanos e legítimos, ainda que contestáveis.
Também dentro do território nacional, decisões foram tomadas com base na autonomia do país. O cancelamento do visto de um jornalista americano em 2024 é um desses episódios. A retenção e o interrogatório de cidadãos estrangeiros, inclusive de jornalistas, por autoridades brasileiras segue a mesma lógica de soberania, muitas vezes usada por outros países, como os EUA, sem maiores justificativas. Há pouco tempo, um jornalista americano foi detido por horas no aeroporto do Galeão por decisão das autoridades brasileiras, sem que isso configurasse ruptura diplomática.
A questão, porém, ganha contornos delicados quando o próprio Brasil questiona medidas semelhantes adotadas por outros países. A recente elevação das tarifas pelos Estados Unidos sobre determinados produtos brasileiros gerou reação do governo brasileiro, com críticas ao que chamou de "retaliação política". Ainda que se discuta o pano de fundo da medida, se econômica ou política, trata-se, acima de tudo, de um exercício soberano dos EUA. Assim como o Brasil aumenta tarifas para proteger sua indústria, os EUA têm direito de fazer o mesmo em defesa de seus interesses, ainda que com motivações discutíveis.
A incoerência brasileira aparece quando o governo apela ao discurso da soberania como escudo retórico para justificar seus próprios atos, mas não reconhece esse mesmo direito quando exercido por outros. É o caso, por exemplo, da ordem expedida pelo STF para que empresas sediadas nos Estados Unidos, como redes sociais, cumprissem determinações judiciais sem observar os canais de cooperação jurídica internacional previstos em tratados. Em resposta, os EUA não reconheceram essas ordens por vício de procedimento. E estavam, também aí, exercendo sua soberania.
Mais grave foi a tentativa de imputar responsabilidade criminal a cidadãos americanos que sequer estavam em território brasileiro, por ações praticadas nos Estados Unidos. Algo que, à luz do direito internacional, beira o despropósito. A soberania brasileira, nesse caso, foi usada como justificativa para ultrapassar os limites da jurisdição, ferindo justamente o princípio que se dizia defender.
Não se trata de minimizar o direito do Brasil de tomar decisões soberanas, mas sim de compreender que esse direito também vale para os outros. A crítica a medidas adotadas por nações estrangeiras só pode ser feita com legitimidade se partirmos do mesmo padrão de coerência. O governo brasileiro, ao longo dos últimos anos, invocou a soberania nacional para negar pedidos de cooperação jurídica, para se posicionar sobre conflitos geopolíticos distantes e até para interceder politicamente em casos de figuras públicas estrangeiras.
Como esquecer os atos de solidariedade de Lula à ex-presidente argentina Cristina Kirchner, em meio a investigações criminais em seu país? Ou o apoio diplomático dado à ex-primeira-dama do Peru, Nadine Heredia, quando também respondia a acusações de corrupção? São ações de natureza política, travestidas de solidariedade institucional, mas que envolvem escolhas soberanas com efeitos diplomáticos concretos.
Da mesma forma, parlamentares do Partido dos Trabalhadores viajaram, ainda durante o governo Bolsonaro, para denunciar o Brasil em foros internacionais, como na OEA e na ONU. Essas ações, à época, foram vistas como legítimo exercício de soberania e liberdade de expressão. Hoje, quando o Brasil se vê alvo de críticas externas, o governo reage com indignação, esquecendo o precedente que ele mesmo ajudou a construir.
Mais recentemente, a atuação da USAID, agência de cooperação dos EUA, também foi questionada por suposta interferência na política brasileira, ao elaborar material de orientação sobre desinformação nas eleições. Curiosamente, o material usava a mesma expressão “desordem informacional”, que seria depois incorporada em votos de ministros do STF, como Lewandowski, demonstrando a profundidade do intercâmbio ideológico e estratégico entre instituições.
Soberania não é capricho nem favor. É o reconhecimento, pelos outros, da autoridade legítima de um país de se autogovernar. Quando exercida com responsabilidade, ela fortalece a diplomacia. Quando usada de forma seletiva, transforma-se em hipocrisia internacional.
O governo brasileiro precisa decidir, com maturidade diplomática, se é soberano e respeita a soberania dos outros países, ou se não reconhece a soberania das demais nações e, dessa forma, relativiza a sua própria. Precisa, de fato, reconhecer que viver em um mundo de nações exige respeitar não apenas a própria autonomia, mas também a dos outros.
Carlos Sant’Anna é advogado e presidente da Comissão de Assuntos Tributários da OAB/PE.
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