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Doação Mitocondrial: Uma Concepção a Três

Mitocôndrias são organelas celulares, com DNA próprio, situadas no óvulo e, quando sofrem mutações, causam algumas doenças hereditárias

Por JONES FIGUEIRÊDO ALVES Publicado em 26/07/2025 às 7:00

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A técnica reprodutiva inovadora que envolve fertilização in vitro com DNA de três pessoas gerou oito crianças livres de doenças hereditárias no Reino Unido, conforme relatório divulgado nesta quarta-feira última (16.07.25) e com estudo publicado na revista científica "New England Journal of Medicine".

As crianças estão se desenvolvendo saudavelmente; a mais velha tem mais de dois anos e a mais nova cinco meses, segundo o neurologista pediátrico Robert McFarland, da Universidade de Newcastle, um dos condutores das pesquisas. Na Inglaterra, a cada ano 200 crianças nascem com defeitos do DNA mitocondrial.

Trata-se da doação mitocondrial, um extraordinário avanço da ciência que desafia o direito. A técnica significa a reprodução assistida de filhos com três pais genéticos, onde a mãe mitocondrial colabora com seu DNA próprio. Essa técnica de microtransplante mitocondrial, desenvolvida em Newcastle, ganhou autorização legal no Reino Unido. A lei inglesa aprovada pela Câmara dos Comuns (03.02.1015), revolucionou a legislação bioética que proíbe, em todo mundo, a manipulação do genoma humano, o uso de materiais genéticos combinados ou que embriões geneticamente alterados sejam implantados na mulher. A esse respeito, tive oportunidade de escrever os artigos “Filhos multigenéticos” (13.04.2013) e “O DNA não mais absoluto (21.09.2013).

Mitocôndrias são organelas celulares, com DNA próprio, situadas no óvulo e quando sofrem mutações causam doenças hereditárias; significando que mães portadoras de mutações mitocondriais (miopatia mitocondrial) impõem aos filhos o destino genético de uma concepção feita por óvulos doentes. Uma avançada técnica de reprodução assistida vem possibilitar que o núcleo do óvulo da futura gestante seja removido e transplantado para o óvulo de mitocôndrias saudáveis de outra mulher, evitando-se doenças graves no filho a ser concebido.

Interessante que mitocôndrias adoecidas do sêmen não penetram no óvulo ao tempo da fecundação; a dizer que os defeitos genéticos advenientes da miopatia mitocondrial são de herança materna, provocando cegueira, convulsões, doenças cardíacas e hepáticas.

Anota-se que a mitocôndria, verdadeira usina de energia celular, tem sua transmissão genética, pelo processo de fertilização artificial (in vitro) em percentual insignificante; ou seja, a mãe doadora representa apenas 0,1% do DNA total. Mais precisamente, o DNA mitocondrial saudável é composto de 37 genes da mãe doadora, enquanto o núcleo do óvulo transportado da mãe biológica e gestante possui cerca de vinte e cinco mil genes da genitora.

Assinale-se que tem sido defendida a doação mitocondrial, diante da elevada contribuição que a terapia gênica oportuniza a evitar que crianças sejam vítimas por doenças incapacitantes, que afetam coração, fígado, atividades musculares, entre outras patologias severas que podem conduzir à morte. Seriam crianças destinadas a morrer, por falhas da mitocôndria. Cerca de setenta tipos de mutações em genes do DNA mitocondrial vinculam-se ao surgimento de determinadas doenças, algumas fatais.

Sublinha-se que três procedimentos de transferência de núcleo existem e são utilizados a indicar a trindade genética: (i) entre gametas, (ii) na fase de zigoto e (iii) por transferência citoplasmática; certo o objetivo da manipulação de inibir doenças.

Identidades Genéticas Diferenciadas e Implicações Jurídicas
Aliás, tem sido sustentado que o DNA mitocondrial não influencia as características fenotípicas do ser a ser concebido, querendo significar que a trindade genética não será absoluta, ou seja, quase indiferente a segunda mãe. No entanto, a lei inglesa veio dispor que a mãe doadora será anônima, para os fins da relação parental, como sucede com os doadores de sêmen, nos projetos parentais com fecundação artificial heteróloga.

Destarte, ganha relevo científico, sob o amparo da lei, o surgimento de seres criados com carga genética de acréscimo, detentores de identidades genéticas diferenciadas, ao portarem DNAs distintos, ou seja, advenientes de duas mães genéticas. É uma nova espécie de quimera, a desafiar o direito.

A ciência já evoluiu o suficiente para realizar: (i) a biópsia embrionária, em análise de doenças de caráter genético; (ii) desenvolver marcadores químicos capazes de detectarem genes defeituosos, para além de uma simples análise cromossômica; e (iii) produzir diagnóstico precoce de anomalias genéticas no embrião antes de sua implantação uterina. Estes avanços não significam uma linha eugenista; antes permitem terapias gênicas cujos resultados assegurem que os futuros filhos não carreguem consigo genes indutores de doenças sérias.

Para efeito da doação oócita, o DNA mitocondrial é sempre materno; por isso que aquele capaz de gerar doenças genéticas graves ou letais haverá de ser substituído pelo DNA de uma doadora e segunda mãe.

Não há negar implicações jurídicas objetivas, no atinente a esta nova realidade científica, no plano da definição parental, porquanto, diferentemente da hipótese de gestação substituta (relação meramente biológica), o interveniente comparece como um interveniente genético, também oferecendo seu DNA, em composição do filho multigenético. Ou seja, um embrião transgênico.

Sabido que os meios-irmãos têm em comum o pai ou a mãe, e no caso da mãe, os dois compartilham o DNA mitocondrial, o que não ocorre se forem filhos de mesmo pai, com mães diferentes, a novidade biogenética a permitir concepção a três, com mães genéticas distintas, exige urgente os avanços da ordem jurídica para uma melhor regulação do Direito Reprodutivo.

Jones Figueirêdo Alves é Desembargador Emérito do TJPE. Advogado e parecerista.



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