O Direito não se escreve sem mulheres negras
Lélia Gonzalez, diz: "a gente não nasce negra, a gente se torna negra". E tornar-se negra, no Direito, é ato político, é insurgência institucional.

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O dia 25 de julho carrega consigo a força de muitas vozes silenciadas. Instituído como o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, a data é um marco de resistência, memória e denúncia contra as múltiplas opressões que atravessam a vida das mulheres negras nas Américas. No Brasil, o dia também homenageia Tereza de Benguela, símbolo de liderança e estratégia política de uma mulher negra à frente do Quilombo do Quariterê. É, portanto, uma data que nos convoca — como país, como sociedade e como instituições — a enfrentar os abismos estruturais que o racismo, o sexismo e a desigualdade econômica ainda impõem às mulheres negras.
É nesse contexto que a figura de Esperança Garcia se impõe como farol para a advocacia brasileira e, especialmente, para nós, mulheres negras. Escravizada, Esperança teve a ousadia de escrever uma carta em 1770 ao governador da Capitania do Piauí, denunciando os maus-tratos sofridos por ela e por seus filhos. Uma carta jurídica, precisa, e marcada por um senso de justiça que atravessou séculos. Reconhecida apenas em 2023 pelo Conselho Federal da OAB como a primeira advogada do Brasil, Esperança representa a ancestralidade do direito à voz e à defesa da dignidade — mesmo nos contextos mais adversos. Esse reconhecimento, mais que simbólico, tem sido motor de transformação em diversas seccionais da OAB, como em Pernambuco, onde a luta antirracista tem se tornado uma diretriz institucional.
A criação de uma Comissão de Igualdade Racial permanente, a implementação de cotas raciais para composição de cargos na OAB/PE e Quinto Constitucional, a aprovação de um Plano Estadual da Advocacia Negra em vigor desde 2023 e o fortalecimento de ações voltadas ao suporte psicológico da advocacia negra, especialmente em casos de violações de prerrogativas, são alguns exemplos concretos de um compromisso que saiu do discurso e se materializou em políticas. Também foi na OAB Pernambuco que nasceu o Prêmio Medalha Esperança Garcia, uma homenagem às trajetórias de mulheres negras que, como a da própria Esperança, desafiaram estruturas e abriram novos caminhos. Caminhos que, hoje, precisam continuar sendo trilhados e ampliados.
Neste mesmo chão, tornei-me a primeira conselheira seccional negra da OAB/PE em 2019 a primeira mulher negra a compor sua diretoria executiva em 2022. Mais do que um marco pessoal, esse fato traduz a urgência de uma representatividade comprometida com a transformação estrutural da justiça. Ser a primeira tem o peso do pioneirismo, mas sobretudo o propósito de não ser a última. Renovo o compromisso de servir como ponto de partida para que outras mulheres negras, com suas múltiplas vozes e experiências, também possam ocupar os espaços que historicamente lhes foram negados — e de onde jamais deveriam ter sido excluídas. Porque ainda que tenhamos avançado, o sistema de justiça brasileiro ainda está distante de se autodeclarar antirracista. As estatísticas de sub-representação de pessoas negras, sobretudo mulheres, nos tribunais, nas bancas de advocacia, também nas coordenações acadêmicas e nos cargos de liderança institucional são reflexo de um país que ainda não enfrentou sua dívida histórica com a população negra.
E é por isso que o papel da Ordem dos Advogados, do Sistema de Justiça, das Instituições de Ensino e de todas as organizações, independente de sua natureza, é essencial nesse processo de virada de chave. A OAB Pernambuco, por meio da Comissão de Igualdade Racial e de ações como o Julho das Pretas, com programação majoritariamente pensada para e por mulheres negras, tem dado provas de que é possível fazer diferente. Mas o caminho é longo. É preciso radicalizar a inclusão, institucionalizar a equidade e reconhecer que justiça que não é antirracista, não é justiça. Neste 25 de julho, o chamado não é apenas por homenagem. É por reparação. Por mais Esperanças. Por mais Terezas. Por mais caminhos abertos por e para mulheres negras. Que a sociedade compreenda que garantir espaços de poder para mulheres negras não é favor: é dever histórico.
Afinal, como nos ensinou Lélia Gonzalez, "a gente não nasce negra, a gente se torna negra". E tornar-se negra, no Direito, é ato político, é insurgência institucional.
Manoela Alves, diretora Tesoureira da OAB/PE