A polarização que nos sufoca
A polarização política ainda nos sufoca, impedindo um debate sem preconceitos e restrições ideológicas que tenta paralisar quem pensa diferente.

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A truculência de Donald Trump contra o Brasil provocou um terremoto na política brasileira. Ao mesmo tempo em que aprofunda a polarização política, está quebrando a aglutinação da direita em torno do extremista Jair Bolsonaro. O bolsonarismo já está caracterizado como condenável entreguista, na medida em que a chantagem imperialista de Trump procura interferir no julgamento do golpista Jair Bolsonaro e foi apoiada pelos bolsonaristas (alguns de forma direta e explicita, outros mais temerosos das consequências eleitorais). Quando o país é agredido e ameaçado por uma grande potência, como agora, o nacionalismo emerge como uma atraente bandeira política, especialmente se o governo estadunidense aplicar efetivamente a grave sanção comercial e continuar agredindo as instituições da República. O presidente Lula da Silva sabe a força que tem o nacionalismo e já o adotou como o estandarte da sua campanha eleitoral do próximo ano. Lula aposta numa nova polarização - nacionalistas versus entreguistas - os que resistem e enfrentam as ameaças de Trump e os que apoiam as agressões imperialistas contra a nação brasileira.
Os palanques estão postos. O provável isolamento político de Bolsonaro pode levar à afirmação de novas lideranças de direita (vários candidatos a presidente já estão no páreo, desde que consigam escapar da pecha de antipatriotas, teriam que apagar as declarações iniciais de clara simpatia pela violência de Trump). Dizer que Lula é culpado da agressão do mentecapto presidente dos Estados Unidos, como têm feito estes candidatos, é uma forma nada sutil de justificar a violência contra o Brasil de uma grande potência e termina concordando ou defendendo o xerife do Norte. Se isto levar a um esfacelamento do bolsonarismo, poderia ocorrer um arrefecimento da polarização com duas possíveis consequências futuras: ou Lula corre solto na pista eleitoral com a bandeira nacionalista, ou abre-se o caminho para uma alternativa política diferente dos dois polos com alguma chance eleitoral. Diferente em que? Os que não querem Lula nem Bolsonaro rejeitam o autoritarismo retrogrado do bolsonarismo, mas não abraçam o populismo de Lula, com seu reduzido apreço pelo equilíbrio das constas públicas e sua preferência pelo assistencialismo.
A defesa nacional e a sensibilidade social não são invenções, nem propriedades de Lula e do lulismo e devem ser a base de toda tendência política que abomine o discurso e as práticas da extrema direita. Na campanha eleitoral, na tentativa de impedir candidaturas alternativas, Lula vai utilizar o nacionalismo e as políticas sociais para esconder as diferenças de visão de mundo e de orientação política no espectro político brasileiro. No cenário atual, não existem lideranças fora da polarização com pretensões eleitorais e, principalmente, com capacidade de aproveitar o terremoto político e capitalizar a grande parcela da população que não quer Lula nem Bolsonaro. A pesquisa recente da Quaest mostrou que 66% dos consultados acham que Lula não deveria se candidatar à reeleição e 65% dizem que Bolsonaro não deveria ser candidato à Presidência. Sobra quem?
Como Lula, qualquer candidato comprometido com o desenvolvimento do Brasil deve defender a soberania nacional e as instituições democráticas da República e deve se consolidar com as políticas sociais. Entretanto, não pode ficar preso ao passado e limitado ao imediato, terá que buscar o equilíbrio fiscal, ao mesmo tempo em que aposta em reformas estruturais e investimentos estruturadores de mudança. O que significa isso? Antes de tudo, entender que o Brasil não tem futuro se continuar com 45% dos habitantes vulneráveis e dependentes da ajuda do Estado para sobreviver (capacidades humanas desperdiçadas), se não forem feitas radicais redefinições de prioridades para acabar, nos médio e longo prazos, com esta lamentável condição de miséria. Por mais que sejam relevantes, os diversos mecanismos de assistência social e transferência de renda se limitam a moderar o sofrimento imediato dos pobres (nada trivial, é claro) mantendo-os pobres. Para enfrentar a pobreza será necessário a implantação de programas estruturadores que vão além do fluxo de renda, formando ativos sociais que potencializam a capacidade de geração própria de renda, reduzindo a independência da assistência social. Além da necessidade de investimento concentrado na educação e na qualificação profissional - os dois pilares da formação de ativos sociais - um governo transformador deve enfrentar o dramático passivo social do esgoto sanitário, que joga metade dos domicílios brasileiros fora da rede de coleta de esgoto. A universalização do esgoto é muito mais importante que a ampliação de hospitais e médicos para tratar das doenças que decorrem das péssimas condições sanitárias do Brasil.
As reformas estruturais passam também por mudanças na estrutura e organização do Estado brasileiro, ineficiente, caro e dispersivo, contemplando, entre outras medidas, uma reformulação do sistema federativo - descentralização e fortalecimento dos entes federativos viáveis - uma revisão das estruturas das instituições da República, com elevado custo e desperdício de recursos públicos, o fortalecimento do planejamento e da gestão por resultados, a eliminação dos altos salários e seus penduricalhos (principalmente no Judiciário), e o fim das chamadas emendas parlamentares, que representam hoje um quarto das despesas discricionárias do Executivo e fragmentam os recursos orçamentários em distribuição clientelista.
A polarização política ainda nos sufoca, impedindo um debate sem preconceitos e restrições ideológicas que tenta paralisar quem pensa diferente. Mas o momento econômico e político do Brasil e do mundo permite e exige a promoção de uma ampla discussão em torno do futuro do Brasil, das causas estruturais da nossa relativa estagnação e imobilismo e das desigualdades sociais. Que os intelectuais, as lideranças da sociedade e os políticos comprometidos com o Brasil (acreditem, existem) analisem, comentem e contribuam para a construção de um projeto de Brasil que vá além das próximas eleições. Mas, pensando no futuro, ofereçam orientações políticas para a escolha do futuro Presidente da República e na renovação do Congresso Nacional.
Sérgio C. Buarque, economista