Roberto Pereira: Austregésilo de Athayde, um legado e uma saudade imortais
Com ele, fui a Caruaru, sua terra-berço, lá participando de uma sessão solene em homenagem a Tabosa de Almeida, quando, à ocasião, ocupou a tribuna...

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O Brasil cultural se encheu, há anos, de um vazio que tem a dimensão da inteligência e da honradez desse mais do que imortal, terno e eterno Belarmino Maria Austregésilo de Athayde, que, ao longo dos seus quase 95 anos de vida, foi um humanista no sentido amplo da palavra.
Veio-me à memória, hoje, o inesquecível Austregésilo!
Apesar de todos os seus saberes, do denso e imenso cabedal de conhecimentos, o consagrado escritor, mais jornalista do que literato, como gostava de repetir, nunca se encheu de empáfias ou jactâncias. Manteve-se simples e humilde, passando ao largo de todas as vias em direção à vaidade, uma das fraquezas do espírito humano.
Conheci-o nos idos da década de 1980, levado que fui à sua pessoa – e ao seu convívio – pelas mãos de um outro grande de Pernambuco, pesqueirense, o poeta e acadêmico Audálio Alves.
Entre mim e ele, de logo, um traço de união: Nilo, meu pai, uma das benquerenças do então presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL).
Perguntou-me à queima-roupa:
- O Brasil sabe que sou pernambucano, mas, indago, de qual cidade?
De Caruaru, respondi, cheio de alegria.
Notei que ele gostou do acerto e continuou o diálogo, afirmando:
“Já falei em diversas tribunas do mundo, inclusive no Palais de Chaillot, mas minha mãe não se contentava. Dizia-me sempre: ‘mas nunca discursou no Teatro de Santa Isabel,’ que era o grande referencial da cultura no Nordeste brasileiro.”
Firmamos, eu e o autor do Canto Agrário (Audálio), o compromisso de tirá-lo dessa frustração, o alento/acalento de um velho sonho materno.
Dito e feito. Aqui, naquele monumento histórico, onde, segundo Joaquim Nabuco, ganhou-se a causa da Abolição, para receber, em outubro de 1986, o troféu Cultura Viva, o velho-moço Austregésilo de Athayde, a plenos pulmões, proferiu magistral discurso, uma conferência-aula, tendo por base, ainda, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, recordando, inclusive, a coautoria do texto, já que, consagradoramente, ele fora um dos redatores.
Lamentavelmente, apenas nessa solenidade uma quase meia casa, quando poderia – e deveria – atrair gente aos borbotões.
Depois, já corria o ano de 1990, no ensejo da campanha de restauração daquele teatro, o Dr. Austregésilo de Athayde fora o orador oficial, proferindo um longo pronunciamento, uma rica mensagem de exaltação e exortação à liberdade, exclusivamente à recuperação do Santa Isabel, considerado o foyer da cultura pernambucana. Nessa noite inapagável, aí, sim, o espaço foi pequeno para o mundo de gente que se apinhou nas cadeiras do térreo e de todos os outros andares.
Nessas duas visitas ao nosso Estado, ciceroneei-o o mais que pude. Houve um dia, após umas andanças e canseiras, agradáveis pela companhia e pelos lugares visitados, inclusive a Oficina de Brennand, um dos principais acervos artístico-culturais de Pernambuco, fomos, à noite, jantar.
Antes do jantar, imaginem os que me leem, qual o intento do nosso imortal? Pasmem: visitar uma danceteria, dançar uma lambada. Carmem, a sua secretária, interveio: “não pode, não há nenhum show, porque hoje é quarta-feira.” Esta foi uma invenção saudável, pela exaustão da auxiliar, visando, sobretudo, poupar as energias do grande guerreiro da imortalidade brasileira.
Durante a ceia, no Hotel Casa-Grande & Senzala (à época, existente), restaurante Mucama, após ele ser abraçado e beijado por todas as mulheres presentes, veio o gesto bem natural ao homem afetuoso que ele foi: presenteou a minha mulher, Elaine, com um anel indiano, que fora, segundo ele, a primeira lembrança dada a então namorada, a dona Maria José, sua companheira de matrimônio e de todos os momentos.
Com ele, fui a Caruaru, sua terra-berço, lá participando de uma sessão solene em homenagem a Tabosa de Almeida, quando, à ocasião, ocupou a tribuna, saudando a cidade de Vitalino, também dos irmãos Condé, deixando que as palavras pululassem diante da nostalgia que a saudade lhe impunha.
No outro dia, logo cedo, bons madrugadores, tomamos café juntos. Ele se alimentava de quase nada, ganhando, neste mister, apenas para o então senador Marco Maciel.
Numa prospecção íntima, indaguei-lhe do segredo da sua saúde, já que ele me dissera, antes, nunca ter tido uma doença, uma gripe sequer, desconhecendo até os números de sua pressão arterial.
“O meu segredo é dormir profundamente, qual uma pedra, durando 8 horas por noite. Não beber e não fumar. Alimentar-me do apenas necessário. Mas, sobretudo, colar o sono. Nada me abala, quando estou nos braços de Morfeu.”
Com ele, passeei pela Feira de Caruaru, onde “tem tudo pra gente ver.” O assédio dos populares foi grande. O ilustre jornalista e escritor já não se lembrava da casa onde nasceu, nem mesmo da rua que lhe deu endereço. Uma pena, porque seria imperiosa a colocação de uma placa alusiva.
Nunca fui ao Rio de Janeiro para não o visitar. Beijar a pedra, como na liturgia católica. Reverência e admiração, respeito e amizade.
No seu nonagésimo aniversário, bati à sua porta, na Presidência da ABL, onde todos eram atendidos.
Abracei-o, exclamando:
Dr. Austregésilo, 90 anos, que idade linda!
Ah! Meu filho, acho 30, três vezes mais linda!
Saindo da Academia, acompanhei-o, quando algumas moças exclamaram: 90 anos, hein, Dr. Austregésilo?
“É, minhas filhas, mas apenas dos joelhos para baixo.”
Dr. Austregésilo, dono de uma cabeleira esvoaçante, tinha a beleza da inteligência fulgurante. Avultava nele a sua forma simples de ser gente e agente do bem, singular na sua pluralidade, um exemplo de administrador, 35 anos ocupando a Presidência da ABL, alinhando-se em competência, segundo se dizia, a Machado de Assis e a Afrânio Peixoto.
Ele viverá por suas obras e feitos valorosos, deixando, entre nós, o dever da fidelidade à herança por ele deixada: um legado de inteligência e de cultura, de trabalho e de civismo, de bravura e de obstinação.
A memória do tempo não apagará, de nós brasileiros, a figura magistral desse homem liberto da lei da morte, de há muito – e sempre uma saudade imortal!
Roberto Pereira foi secretário de Educação e Cultura do Estado de Pernambuco e é membro da Academia Brasileira de Eventos e Turismo.