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Ivanildo Sampaio: Era uma vez no Dom Pedro

Estive presente na abertura do Dom Pedro. Mas não estive presente nos seus últimos suspiros. Lembro de quando tudo começou na Rua do Imperador...

Por IVANILDO SAMPAIO Publicado em 20/07/2025 às 0:00 | Atualizado em 20/07/2025 às 9:13

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O fechamento de um velho restaurante, discreto e acomodado, mesmo com uma clientela a resistente e fiel, é triste, como uma rosa que que murcha, como a bola da "pelada" que fura, ou um trapezista que cai. Depois depois de mais de meio século funcionando no mesmo local onde nasceu, na Rua do Imperador, a poucos metros da antiga sede do JORNAL DO COMMERCIO, o Restaurante Dom Pedro é agora mais uma casa fechando no centro decadente da cidade. E para os saudosistas, lembrando Carlos Drummond, "como dói".

Estive presente na abertura do Dom Pedro. Mas não estive presente nos seus últimos suspiros. Lembro de quando tudo começou. Eu era apenas um jovem repórter do JC, mas todos nós, da Redação, fomos convidados para a abertura do novo restaurante . Por trás do investimento, estava Julio Crucho, um português nascido em Sabugueiro, na Serra da Estrela, diplomado "mestre pasteleiro" pelo Liceu de Artes e Ofícios de Lisboa.

Julio chega ao Brasil ainda jovem , trazido pelo pelo empresário Luis Dias, proprietário do Hotel São Domingos,que também viveu seus dias de glória e hoje padece quase abandonado . Luis Dias era irmão dos também empresários Licínio, Amadeu e Armênio - que um dia deixou o pequeno lugarejo de Portoferreiro, em Portugal, para se fixarem em Pernambucano. Armênio , o único sobrevivente, era alfaiate de profissão - mas fez nome e fama como proprietário do centenário Restaurante Leite, hoje sob controle de suas filhas. E o "pasteleiro" Júlio um dia d eixou o São Domingos e, com um pequeno capital que conseguiu poupar, abriu, na Rua Matias de Albuquerque, o Restaurante Lero - Lero, . de nome esquisito e pretensões modestas.

Apesar de suas limitações, o Lero-Lero obteve, na época, algum sucesso , e garantir ou necessário "cacife" para um ´projeto maior e mais ambicioso. Estava nascendo o Restaurante Dom Pedro. Evidente que naqueles anos da década de sessenta do século passado, a Rua do Imperador era muito mais Efervescente: estavam lá, na realidade de então, a Secretaria da Fazenda, com seus "fiscais de renda"; o Gabinete Português de Leitura ; o Palácio da Justiça , abrigando a cúpula do Poder Judiciário ; agências bancárias ; o Arquivo Público ; o Jornal do Commercio e o Diário da Manha, além de uma elegância formada por bolsas de estabelecimentos que garantimos, ao Dom Pedro, mesas lotadas no horário do almoço e um consumo extraordinário de cervejas , após o fim do expediente nas redações de três jornais: Diario de Pernambuco, Jornal do Commercio e Diario da Manhâ.

O Dom Pedro tinha também seus clientes fiéis, com mesas reservadas e intocadas. O escritor e imortal Mauro Mota, diretor do Arquivo Público, era um deles; o jornalista Esmaragdo Marroquim, Do Jornal do Commercio, era outro. E clientes várias das noites de sexta-feira, tardes de sábado e domingo, como Clavio Valença, Mariozinho Neves Batista, Nailton Santos, Eunicio Campelo, João Hélio Mendonça, Byron Sarinho, Lino Rocha, Antonio Brasil e tantos outros, fiéis freqüentadores da Rua do Imperador.

Coloque-se aí repórteres e editores do Jornal do Commercio e do  Diário de Pernambuco. Resumindo: O Diário da Manhã não suportou a crise que atingiu os jornais impressos e cerrou suas atividades muito antes do Dom Pedro ; o Diário de Pernambuco, engolido por brigas internacionais que racharam os Diários Associados criados por Assis Chateaubriand, mudou de dono e de endereço; o Jornal do Comércio, que faz parte de um sistema compreendido ainda por uma cadeia de emissoras de rádios e de televisão, concentrou suas atividades no bairro de Santo Amaro, onde estavam os estúdios daquela emissoras e o parque industrial. Com tantas mudanças , foram também as clientes cativos de Julio Crucho. Já idoso, com saúde frágil, Julio via, dia após dia, noite após noite, sua clientela encolhendo.

Os mais idosos, que vinham desde aqueles anos sessenta do século npassado, foram aos poucos se recolhendo obrigados pela idade; outro aposentaram-se e foram viver em paz o tempo que ainda eles eram reservados; os jornalistas da nova geração preferem os meios de comunicação digital, ao papo descontraído nas mesas do velho Dom Pedro. Muitos deles jamais "penduraram um vale" com as cervejas da semana, para quitar com o pagamento da quinzena.

Alguns meses antes do Restaurante Dom Pedro fechar, quando Julio, já alquebrado e a saúde debilitada ainda resistia, fui ao centro da cidade à procura de um Cartório, que já não eu estava lá. Meio desorientado, me vi, de repente , sentado numa mesa do restaurante, antes "cativa" de Byron Sarinho. Julio Crucho, em silêncio, rasgava papéis velhos que ia retirar de um cofre igualmente velho. Pegava uma folha, amarelada, lia, rasgava e colocava numa cesta de lixo. Eram "vales", "penduras". contas não pagas de clientes antigos já falecidos, que não deixaram herdeiros nem representantes. Nenhum desses vales foi assinado por um jornalista.

Engoli a tristeza diante do tempo cruel. E positivo orgulho da honestidade de alguns companheiros velhos, que ganhavam um pouco, mas não negociavam sua dignidade. A própria Rua do Imperador Dom Pedro I, assim batizada desde os tempos mais antigos , foi registrando lentamente o seu abandono e sua decadência, que nem mesmo os pontos do jogo-de-bicho, ali há compatibilidade décadas, resistiram a tamanha indiferença. Assim como se foram os cartórios, as mesas de sinuca, as cadeiras de engraxate, os fiteiros, a "Cristal", "A Portuguesa" o "Florão", e a "Livraria Ramiro Costa", - fora outros vizinhos, quase centenários, o Dom Pedro também deixou seu antigo endereço, para entrar na história.

Ivanildo Sampaio, jornalista

 


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