Narrativas da anti-tragédia escolar
O que se ganha (ou se perde) com a força que leva à liberdade e o preço que toda sociedade desigualitária paga por não oferecer condições dignas?

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Há algo de surpreendente e ao mesmo tempo constrangedor numa sociedade moderna, minimamente civilizada e supondo que persegue -com suas instituições- a garantia de direitos fundamentais (entre os quais o direito à educação), que um livro inteiro, reunindo dez capítulos, dedique-se a avaliar, descrever e analisar o êxito escolar de meninos e meninas que, saindo de meios sociais extremamente desprivilegiados e "desafortunados" (voltarei a comentar este termo!), extraídos de famílias de baixíssima ou nenhuma escolarização, muitos deles de meios rurais desassistidos pelas políticas públicas e, por conseguinte, com chances de sucesso profissional bastante improvável, tenham se tornado... PROFESSORES! E alguns deles com elevada formação pós- graduada. Mas é curioso, também, que um dos organizadores e também autor praticamente presente em todos os artigos, seja o professor Constantin Xypas: ateniense, e posteriormente emigrado para França e finalmente para o Recife, ninguém melhor do que um grego para compreender o alcance do conceito de TRAGÉDIA. Porque é disto que este livro - "Êxito escolar e ascensão de pessoas de origem popular"- trata: da injunção trágica presente em toda educação!
Na primeira parte da "Poética", Aristóteles define a tragédia como "a passagem de um estado bom para um estado mau de um homem acima do normal dos homens que por ter praticado uma boa ação cai numa situação de desgraça", e ao analisar "Édipo-Rei", ele identifica personagens e etapas da fortuna trágica (herói, destino, empatia, protagonista, deuteragonista, tritagonista, peripetia, anagnorisis, catarse): o que está em jogo, na tragédia, não é apenas o terror e a piedade pela sorte do Herói: é a luta agonística entre o DESTINO e a DELIBERAÇÃO pessoal. Até que ponto podemos decidir sobre nossas vidas e a até onde elas dependem de circunstâncias que não controlamos? É por isso que chamar aquelas pessoas saídas de meios paupérrimos de "desafortunadas" é desmerecer o esforço que fizeram exatamente contra a Fortuna, contra um Destino que os condenava à simples reprodução das condições sociais de onde vieram. E é também por isso que o conceito-chave, o fio que costura todos os artigos aqui reunidos é o de "Sociologia do êxito improvável", cunhado pelo próprio Xypas! Há algo de profundamente "grego" neste conceito! Mas aqui, o personagem central não é o Édipo de Sófocles, mas o Prometeu de Ésquilo: aquele que contraria os deuses do Olimpo para oferecer o fogo aos homens, que lhes dará a Civilização. É o que os professores daquelas humildes escolas fizeram com aquelas crianças. É o que aqueles meninos e meninas, tornados agora professores, estão fazendo com outras crianças!
O que ocorre nestes relatos é o que Hannah Arendt chamou de "milagre". Em Arendt, este conceito não tem nada de transcendente ou religioso, tal como descrito nos evangelhos canônicos: trata-se de um milagre "secular", aquele produzido pela simples intervenção humana, em que "algo é começado e não sabemos como vai terminar" (Ação) e que, rompendo a cadeia previsível dos acontecimentos, inaugura o inédito, o insólito, o não-pensado (aquilo que Paulo Freire chamou de "inéditos viáveis": o conjunto de possíveis presentes em todo real e nem sempre visíveis a "olho nu").
Os meninos e meninas que compõem as narrativas descritas neste livro estavam condenados ao fracasso na suas "relações com o saber" (Bernard Charlot, com quem trabalhei na equipe ESCOL, na Universidade de Paris VIII, é um dos inspiradores teóricos deste livro), quer dizer, na sua constituição como "Sujeitos autores de sua própria obra", mas surgem - "miraculosamente"- como pequenos e resistentes "Prometeus" que, mesmo acorrentados no Cáucaso da miséria social, da ausência de políticas públicas equalizadoras ou da falta de padrões republicanos minimamente aceitáveis de educação e de direitos, resolveram desafiar os "deuses" (o destino social) para se tornarem PROFESSORES a partir da ação de outros professores! É isto que todo professor faz: colocar-se deliberadamente no interior de uma encruzilhada entre o instituído e o instituinte, entre o passado e o futuro, entre o "já dado" e o "por construir"; recebendo crianças vindas do interior do espaço privado e afetivo (nem sempre satisfatório quando se trata dos segmentos populares) e lançando-as no espaço público, onde serão vistas e ouvidas como cidadãos e, sobretudo, como professores, reabrindo este interminável processo de continuidade e de renovação do Mundo.
Enganar-se-á quem pensar este livro como a vitória da ideologia meritocrática, da farsa do esforço individual numa sociedade de privilégios e de condições desiguais: ele é o relato da conjunção entre "mobilização" e "motivação", entre o que vem de fora (da ação dos professores) e o que vem de dentro (da vontade e do interesse em não sucumbir). É a narrativa de um "milagre" em que o "destino trágico" desses meninos e meninas é contrariado.
O que se ganha (ou se perde) com a força que leva à liberdade e o preço que toda sociedade desigualitária paga por não oferecer condições dignas de vida e de educação para todos?
Flávio Brayner, professor Emérito da UFPE