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As primeiras-damas e a política: da filantropia ao palanque

Um fenômeno vem ganhando força no cenário político brasileiro: a transformação de primeiras-damas em pré-candidatas..................

Por PRISCILA LAPA E SANDRO PRADO Publicado em 14/07/2025 às 0:00 | Atualizado em 14/07/2025 às 11:23

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O movimento, embora travestido da alegação da ampliação da representatividade feminina, revela uma estratégia sofisticada e preocupante de perpetuação de poder por meio da imagem e da familiaridade pública. Prefeitos e governadores, ao se aproximarem do fim do mandato, têm enxergado nas esposas uma ponte para a continuidade de seus projetos políticos vinculados ao controle sobre redes locais de apoio e não a agendas programáticas.

A ascensão dessas figuras ao protagonismo eleitoral se dá, em geral, por sua atuação em áreas tradicionalmente associadas ao cuidado, saúde, assistência social, infância e ações comunitárias. Mas o que se observa na prática é o uso do capital simbólico feminino como um instrumento de marketing político travestido de inclusão. A filantropia se converte em palanque. O trabalho de bastidor vira, nitidamente, uma escada para o voto.

No plano institucional, esse fenômeno tem raízes na crise dos partidos políticos. Em um sistema marcado pela fragmentação partidária e pela baixa densidade programática, lançar uma primeira-dama é uma jogada estratégica racional. Ela oferece ao governante em fim de mandato a promessa de continuidade sem o ônus da rejeição acumulada. O rosto é novo, mas a estrutura permanece. O comando muda de nome, mas não de mãos.

É um tipo de política que se aproxima das práticas dinásticas e patrimonialistas. Na Argentina, nomes como Evita Perón e Cristina Kirchner são exemplos paradigmáticos dessa dinâmica em escala nacional. Casos como o de Michelle Bolsonaro, ventilada como herdeira política de Jair, ou de Janja da Silva, cada vez mais ativa nas redes e nas articulações do governo Lula, apontam que a política brasileira descobriu um novo filão, o da primeira-dama reciclável, que inicia o governo do marido cortando fitas e termina disputando votos.

Nos municípios pernambucanos, é crescente o número de prefeitas que são esposas de gestores em fim de mandato, uma operação que se repete nos bastidores como forma de manter o controle sobre a máquina pública local, especialmente na maioria das cidades onde a política gira em torno de grupos familiares.

As consequências dessa estratégia vão além da disputa eleitoral. Quando primeiras-damas são lançadas como candidatas, reforça-se o personalismo político e a centralidade das relações privadas sobre o espaço público. É um modelo que esvazia o papel dos partidos, desloca o foco da agenda para a figura e enfraquece a ideia de alternância de poder. Além disso, torna-se mais difícil avaliar a real autonomia dessas candidaturas. São mulheres lançadas como protagonistas ou peças de continuidade numa engrenagem que já estava montada?

É evidente que nosso pensamento não é o de desqualificar a presença de mulheres na política. Ao contrário, a sub-representação feminina no sistema político brasileiro é um problema grave que exige enfrentamento sério. O que se discute aqui é o uso instrumental da figura da mulher, especificamente da esposa do mandatário, como estratégia eleitoral, sem garantir espaço para autonomia, construção de liderança ou compromisso com causas de gênero.

Trata-se, portanto, de um fenômeno ambíguo. De um lado, ele pode representar uma porta de entrada para mulheres no jogo político. De outro, pode se tornar uma armadilha simbólica que perpetua estruturas conservadoras e familiares, dando nova roupagem a práticas patrimonialistas.

Cabe ao eleitorado, à imprensa e às instituições democráticas vigiar esse movimento com muita atenção. A política brasileira já é suficientemente personalista e centrada em figuras carismáticas. Reproduzir essa lógica com novas faces, ainda que femininas, pode ser mais um passo na normalização de práticas que enfraquecem o debate público, silenciam a política como arena de ideias e reforçam o velho vício de tratar o poder como propriedade privada.

A democracia brasileira, tão esgarçada por práticas patrimonialistas, não precisa de candidaturas decorativas travestidas de protagonismo feminino. Precisa de mulheres autônomas, com projetos, ideias e coragem para romper com o status quo e não de candidaturas conduzidas por controle remoto, onde o marido sai pela porta da frente e volta pelo gabinete lateral.

O que se vê não é protagonismo, é simulação de renovação. Um truque velho com embalagem nova. Uma maquiagem democrática sobre o mesmo rosto cansado da política tradicional. Se é para falar em representatividade, que seja com coragem e ruptura. Não com o cinismo conveniente de quem disfarça continuidade autoritária sob a retórica da inclusão. A democracia exige verdade, não encenação. E está mais do que na hora de parar de confundir herança familiar com legitimidade política.

Priscila Lapa, jornalista e doutora em Ciência Política; Sandro Prado, economista e professor da FCAP-UPE.

 

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