Carlos Sant’Anna: Censura Suprema
Recente julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre o artigo 19 do Marco Civil da Internet produziu um abalo preocupante, ao reinterpretar norma

O Marco Civil da Internet, instituído pela Lei nº 12.965/2014, é fruto legítimo do debate democrático no Congresso Nacional. Foi amplamente discutido por representantes eleitos do povo, especialistas e a sociedade civil, com o intuito de garantir direitos e deveres no ambiente digital, especialmente os pilares da liberdade de expressão, da neutralidade da rede e da privacidade. Com ele, o Brasil se tornou referência mundial ao equilibrar liberdade e responsabilidade, sem ceder a impulsos autoritários ou populistas.
O recente julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre o artigo 19 do Marco Civil da Internet produziu um abalo preocupante. Ao reinterpretar a norma que atribuía a responsabilidade civil das plataformas digitais à existência de ordem judicial, impedindo a remoção arbitrária de conteúdo. Na prática o STF reescreveu a lei, invadindo competência exclusiva do Poder Legislativo. No Direito, chamamos essa atuação do Judiciário de legislador positivo.
Não se trata de exercício hermenêutico. Trata-se da substituição do papel do Parlamento por decisões judiciais de efeito normativo. A função do STF é clara: declarar a constitucionalidade ou inconstitucionalidade das leis. Regular condutas, convívio e relações privadas é matéria legislativa. Criar normas pela via interpretativa não é compatível com o modelo da separação de poderes. É, ao contrário, uma disfuncionalidade institucional que compromete a legitimidade da democracia, instalando um ambiente de insegurança institucional.
O argumento de que o STF estaria atuando diante da “omissão” do Congresso não justifica esse atalho perigoso. Omissões legislativas devem ser interpretadas também como expressão da vontade do Parlamento, que pode, legitimamente, optar por não debater determinada matéria. Se o STF passa a legislar com base em urgências políticas ou pressões públicas, não está protegendo a Constituição, está assumindo o papel de agente político, desvirtuando sua missão e corroendo a confiança no pacto democrático e das instituições da República.
O resultado é um cenário de grave insegurança, com decisões judiciais imprevisíveis, parâmetros flutuantes para moderação de conteúdo e um risco real de censura prévia. Não se trata de exagero nem de utopia. A própria Ministra Cármen Lúcia, no julgamento, reconheceu que a decisão permite restrições a conteúdos “antes de qualquer decisão judicial”, admitindo, com retórica jurídica, a institucionalização da censura prévia, prática expressamente vedada pelo art. 5º, IX, da Constituição Federal.
O episódio repete o que já se viu no Tribunal Superior Eleitoral em 2022, quando a mesma ministra, diante de conteúdos considerados desinformativos, validou remoções de urgência, muitas vezes sem o contraditório, sem amplo direito de defesa e sem motivação formal, inclusive sem ter conhecimento do conteúdo que seria publicado. O argumento é sempre o mesmo: proteger a democracia. Mas democracia não se protege com censura, e sim com liberdade e responsabilidade. O antídoto ao discurso nocivo nunca foi o silêncio imposto pelo Estado; mas, na ausência de eficiência na prestação jurisdicional, é mais fácil calar as vozes dissonantes.
O Brasil agora se aproxima de um modelo regulatório que imita, com preocupações, o modelo europeu. A União Europeia tem adotado legislações rígidas, como o Digital Services Act, que obriga plataformas a removerem conteúdos considerados ilegais rapidamente, sob pena de sanções. A diferença é que, no modelo europeu, as leis são feitas por parlamentos legitimados, há instâncias de revisão administrativa, e o foco é a proteção de dados e da segurança digital, e não a tutela moral do discurso político como o que se vê pautado no Brasil.
Antes da decisão do STF, o modelo brasileiro era mais protetivo à liberdade de expressão. Exigia ordem judicial para remoção de conteúdos, responsabilizava os autores e não os intermediários, veículos ou plataformas, valorizando a livre circulação de ideias. Agora, com a flexibilização do artigo 19, cria-se uma porta larga para que plataformas censurem conteúdo por receio de responsabilização, sem filtros judiciais e ainda com a chancela do Supremo.
Não se discute aqui a existência de conteúdos nocivos, discursos de ódio ou fake news. O problema é o método. Um Estado que se propõe a definir sozinho o que pode ou não ser dito, fora das regras claras e das garantias constitucionais, torna-se um risco maior do que qualquer desinformação.
A história recente é pródiga em mostrar os abusos cometidos em nome da proteção da democracia.
Aos que ainda celebram a decisão do STF como necessária ou civilizatória, vale lembrar que a censura não se mede pelo conforto da maioria, mas pelo silêncio imposto às vozes dissidentes. Hoje, o silêncio pode atingir o outro. Amanhã, pode ser você.
Carlos Sant’Anna é advogado e presidente da Comissão de Assuntos Tributários da OAB/PE
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