Justiça sem poesia e política feita de sangue
Estamos a sucumbir perante uma onda monstruosa porque os remos se perderam na imensidão das águas.......................................

No Brasil é comum a repetição, na prática, da primeira frase da poesia de Camões: "Ó gloria de mandar ó vã cobiça! " O verso se ajusta aos três Poderes da República e confirma o descrédito não só da política, mas, acima de tudo, dos políticos. A verdade é que a política vem sangrando continuamente. E o sangue borbulha encarnado, carregando consigo as lufadas dolorosas do tempo presente, assim como sucedeu, no passado, com Robespierre, Danton, Marat, Saint-Just e outros.
Algo afim ocorre com a justiça brasileira, modalidade de "cárcere das almas". Ela engrossa ou fertiliza as artérias do poder na medida em que se revela função do Estado. Todavia, a ligação justiça-política possui algo temerário e instável porque é nela que se acendem e digladiam as paixões humanas. E a sociedade se diverte ao ver os cidadãos, outrora poderosos, serem aprisionados ou acossados.
Século melancólico esse nosso! Caso não fosse inditoso, seria demasiadamente burlesco. É como se estivéssemos num espetáculo de magia circense com os olhos fixos no gesto disfarçado do mágico. Ficamos embriagados, chapados e maravilhados diante da mentira. Ilusão e realidade lembram o ano de 1936 quando Josef Stalin promulgou uma constituição que foi considerada a mais avançada do mundo, em termos de direitos e garantias para o povo. Mas isso era apenas utopia. A realidade era outra: o líder soviético tentava erradicar a elite por meio de julgamentos-fantoches.
Ilusão e realidade vêm seguidas, também, de descrença e cansaço. A nossa abertura para o humanismo é muito mais do que uma ilusão perversa. O ser humano não é mais o cerne das nossas reflexões e preocupações maiores. Gradativamente, o indivíduo vai sofrendo redução em suas capacidades e potencialidades. O que existe de verdade é a retórica. A mesma que inspirou a frase de Churchill, numa referência aos acordos de paz celebrados com Hitler em 1940: é necessário alimentar bem os crocodilos para que sejamos poupados quando chegar a nossa vez. Por isso mesmo os aduladores se agarram ao poder como se fossem moluscos na tentativa de salvação. Alguns políticos até fogem do Brasil assumindo o papel de Ìcaro da mitologia grega. Esquecem que Ícaro não construiu as suas asas. Foi seu pai, Dédalo. Ele aconselhou o filho a não voar muito alto para não derreter as asas construídas com penas e cera de abelha. Mas os nossos deputados, em sua maioria, ficam indiferentes a tais conselhos e voam a céu aberto. Enquanto planam, revelam a sua insubmissão, incúria e indiferença. Acreditam que terão sempre a proteção dos seus pares. Mas isso não sucede. A soberba e a vaidade são os ingredientes maiores para a queda, mergulho e provável extermínio. Esse é o evento referido por Thomas Mann em Doutor Fausto para identificar a política como uma modalidade de pacto com o diabo e como narrativa repleta de interrupções, intervalos, morte e recomeços. Em resumo, fazer política é obra coletiva ou grupal. Nenhum político resiste à solidão. A irmandade deve estar presente em todos os momentos. Afinal, na alcateia e na matilha é difícil a identificação dos lobos e dos cães.
E a sociedade? Qual o verdadeiro papel que ela representa nisso tudo? A vocação do povo é, não raro, ficar a serviço de falsos líderes ou heróis. Todavia, na hora da desgraça, ele será apenas um pobre "coitado" e "maluco". Ainda assim todos se apressam para entrar no barco. A meio do caminho, o navio é dilacerado pelo tempestade. É nessa hora que o Comandante grita "salve-se quem puder". Algo semelhante sucedeu no Canto II da Odisseia, quando Ulisses navegava entre monstros. Repentinamente, surge Caríbdis, o redemoinho devorador de embarcações e, na sequência, Cila, o monstro de seis cabeças. Impedido de salvar todos os tripulantes, Ulisses aceita vitimar seis marinheiros. Mas esquece de informar a decisão aos sacrificados. Eis o impasse de todo poder: quando, quem e quantos devem ser imolados?
Na situação especial do Executivo brasileiro, a colisão do navio implica o desprestígio ou queda da popularidade do Comandante que é sempre atribuída aos escândalos, corrupção, nepotismo, incapacidade de resolução dos problemas que a sociedade exige e impossibilidade de obtenção de maioria no Congresso, tendo em conta o nosso presidencialismo de coalizão.
A expressão "maioria no Congresso" tem, no Brasil, significado espúrio: a adoção de uma política de permuta ou troca de benesses. Esse é o nosso grande erro. Os exemplos abundam: enquanto o Congresso criticava a tentativa do governo de aumentar alíquotas cobradas sobre o IOF, os parlamentares clamavam pelo pagamento de emendas parlamentares e propunham a acumulação de salários e aposentadorias; enquanto o Brasil mergulha na insegurança em suas ruas e a imprensa divulga a morte de civis em ações policiais homicídios e outros crimes violentos, os ministros do STF ganham o direito à segurança vitalícia. Logo vai surgir uma dúvida cruel: a vida de um ministro é mais relevante do que a vida de um cidadão de classe pobre ou média? Quanto tempo permanece esperta e sagaz a memória do brasileiro?
O último exemplo, de caráter não exaustivo, é recente e diz respeito ao aumento do número de deputados no Congresso. O Senado aprovou na última quarta-feira a criação de quatorze novas vagas de deputados passando de 513 cadeiras para 527. Em 2023, o STF entendeu ser necessária a redistribuição do número de parlamentares de acordo com o aumento populacional revelado no Censo Demográfico de 2022. Pelos cálculos, apenas sete estados ganhariam deputados: Amazonas, Ceará, Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso, Pará e Santa Catarina. Outros sete sofreriam redução de cadeiras. Usa-se, nesse caso, a lei distorcida de Lavoisier "no Congresso nada se perde, tudo se transforma para pior". Nessa hipótese, Alagoas, Bahia, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Paraíba – que deveriam sofrer redução - ficarão intocáveis. Com tal decisão, segundo estimativa do G1, 95 milhões anuais serão acrescidos ao nosso orçamento, já temerário.
Enfim, vale a pena não esquecer que, diferente de nós, Ulisses não tentou usando remos durante o furacão. Esse é o nosso erro. Por isso estamos a sucumbir perante uma onda monstruosa porque os remos se perderam na imensidão das águas. Qual a decisão do Governo? Ficar à deriva na expectativa de que a tormenta se dissipe, aguardar a chegada de outro Comandante ou esperar por algum navio fantasma?
Dayse de Vasconcelos Mayer, doutora em ciências jurídico-políticas