'O Último Azul' enfrenta o etarismo com uma fascinante jornada de descobertas
Vencedor do Urso de Prata, o filme de Gabriel Mascaro mostra um futuro em que idosos com mais de 75 anos são enviados a uma Colônia

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A pirâmide demográfica brasileira deve sofrer uma transformação significativa nas próximas cinco décadas: segundo o IBGE, haverá mais idosos do que jovens no País.
Esse dado, que parece um "elefante na sala" do debate público, inspira de maneira oblíqua o novo longa de Gabriel Mascaro, "O Último Azul", vencedor do Urso de Prata no 75º Festival de Berlim, que estreia nos cinemas nesta quinta-feira (28/08).
Ambientado em um futuro próximo, sem avanços tecnológicos notáveis e com a desigualdade social intacta, o filme projeta um cenário em que o governo encontra uma solução radical para o envelhecimento populacional.
Ao completar 75 anos, todos os cidadãos são enviados compulsoriamente para a Colônia, espaço onde passam os "últimos anos" de vida em nome da "produtividade" nacional.
É nesse contexto que acompanhamos Tereza (Denise Weinberg), funcionária de uma indústria de carne de jacaré no coração da Amazônia.
Aos 77 anos, ela é obrigada a se aposentar e a antecipar sua ida para a Colônia após uma mudança na burocracia estatal. Mas, em vez de se submeter ao destino imposto, inicia uma jornada poética de autoconhecimento e liberdade.
Distopia e crítica social
Nos primeiros 20 minutos, Mascaro constrói a engrenagem distópica: sequências repetitivas reforçam o peso do Estado numa sociedade regida pela eficiência e pela utilidade - reflexo incômodo de dilemas muito atuais.
O diretor já havia explorado esse viés distópico em "Divino Amor" (2019), em que um Brasil futurista sucumbe ao fundamentalismo religioso.
Desde os documentários "Um Lugar ao Sol" (2009) e "Doméstica" (2012), Mascaro demonstra sensibilidade para registrar tensões sociais. Com "Boi Neon" (2015), firmou-se internacionalmente, e agora entrega o que pode ser sua obra mais madura.
A jornada de Tereza
Na segunda metade, "O Último Azul" transforma-se quando a personagem decide realizar um antigo desejo antes de partir para a Colônia: voar de avião.
O filme assume a estrutura de um "coming of age" (histórias de jornadas sobre amadurecimento), mas, em vez de um jovem, é uma idosa quem faz a trajetória de descobertas.
Como em "A Viagem de Chihiro" ou "Alice no País das Maravilhas", a protagonista cruza caminhos com figuras enigmáticas e situações improváveis que revelam dimensões inesperadas da existência.




Entre esses encontros, destacam-se Cadu, vivido por Rodrigo Santoro em breve mas significativa participação, que abre novas rotas pelos rios amazônicos, e Ludemir (Adanilo), um homem preso ao vício em apostas e álcool, cuja presença amplia a leitura social do filme.
Já Miriam Socarrás (Violeta), uma baqueira que vende bíblias digitais, vem mostrar o poder das relações femininas.
Realismo mágico e força visual
O longa também adquire tons de realismo mágico em pequenos detalhes, como a aparição de um caramujo com secreções alucinógenas, que dialogam com a atmosfera criativa em que a narrativa mergulha.
Já Amazônia, que aqui aparece fora de estereótipos que habitam nosso imaginário, surge como uma personagem, filmada por Guillermo Garza em uma fotografia que transmite movimento constante, como os barcos que cortam os rios.
Por vezes, "O Último Azul" parece um sonho. E é nesse estado onírico que reside seu fascínio: ao contrário de narrativas mais convencionais sobre a velhice, centradas na morte ou na nostalgia, Mascaro prefere filmar o agora. Tereza não aceita a fragilidade; escolhe sonhar, mesmo que a realização final não corresponda exatamente ao imaginado.