Lessa ajudou a ampliar calendário de prévias e rejeitou o título de 'maestro'
Regente de blocos e troças por quase sete décadas, Lessa marcou o frevo com rigor, humildade e uma fidelidade comum às tradições do Carnaval de rua

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José Bezerra da Silva, o Maestro Lessa, cumpriu sua missão com o frevo e com o Carnaval de Pernambuco ao longo de 89 anos de vida, dos quais 68 foram vividos dentro da folia. Faleceu na noite da segunda-feira (21), após sofrer um infarto em sua residência, na Zona Norte do Recife.
Apesar da fama e do reconhecimento popular, Lessa rejeitava o título de "maestro", num gesto de humildade. Dizia que essa alcunha pertencia apenas aos compositores do frevo. A ele, cabia ser "regente".
Na sede da Pitombeira, ajudou a ampliar e antecipar o calendário de prévias com ensaios de domingo de prévias. "Só de Pitombeira foram 19 anos inclusive abrindo em 7 de setembro, que foi uma parceria nossa Júlio de Pitombeira/Maestro Lessa", relembra Julio da Silva Filho, presidente do bloco na época.
Do trombone ao coração da folia
Natural de Nazaré da Mata, começou sua história na música aos 18 anos, quando adquiriu o primeiro instrumento. Sempre disse que não foi ele quem escolheu o trombone: foi o trombone que o escolheu.
Veio para o Recife na década de 1960. Tocava em clubes, em bailes, até montar, em 1992, a sua própria orquestra, que viria a se tornar uma das mais icônicas do Estado. Com ela, participou de apresentações e da gravação de um disco na Holanda, ao lado do Vassourinhas.
Ao mesmo tempo em que vivia a música, José também foi pedreiro e guarda municipal. O apelido "Lessa" veio das peladas de futebol, homenagem involuntária ao goleiro homônimo do América. O nome artístico acabou nascendo ali.
Compromisso selado com o frevo
Foram muitas as agremiações que ele conduziu ao longo da vida. A relação mais duradoura foi com a Troça Tá Maluco, da qual foi regente por 32 anos consecutivos. "Ele era uma máquina de trabalho, de compromisso, de responsabilidade e de amor mesmo pelo frevo. Estabelecia uma relação de amizade com as agremiações", conta Juliano Cavalcanti, um dos organizadores do Tá Maluco.
Em 1992, o único ano em que o Tá Maluco não saiu às ruas por conta da morte da bisavó dos fundadores, a troça fez questão de pagá-lo — ele nunca esqueceu o gesto. A partir dali, prometeu fidelidade à troça e só deixou de tocar quando partiu. "A gente dizia que ele só não tocaria no dia em que não quisesse", lembra Juliano.
Durante sua trajetória, liderou formações de agremiações como Vassourinhas de Olinda, Pitombeira dos Quatro Cantos, Elefante, Caranguejo Papa-Mé e Cariari. No Recife, era figura cativa dos blocos Amantes de Glória e Escuta Levino — símbolos da resistência do Carnaval de rua no Centro da cidade, para além dos grandes palcos e do Galo da Madrugada.
Nos quatro dias de folia, Lessa chegava a comandar até dez blocos diferentes. Tinha energia de sobra, e conhecimento preciso.
"Lessa tinha um comando da orquestra que tornava a execução do frevo muito própria dele. Tinha uma noção, um feeling exato das coisas", recorda Felipe Cabral de Melo, um dos fundadores do Escuta Levino, bloco em que Lessa tocou por 25 dos seus 28 anos de existência.
“Na rua, ele sabia qual frevo cabia em cada momento. Era um dom que ia além do repertório: havia um arranjo muito tradicional, que funcionava perfeitamente no calor da multidão”, completa.
Maria Cláudia, diretora do Bloco da Saudade, ressalta sua "personalidade extraordinária": "Ele estava em paz, e fez tudo o que a gente queria. Tinha uma personalidade forte, sabia o que queria — fazer o melhor para o Carnaval".
Rigor que afinava o coletivo
Lessa também era conhecido por seu rigor. Essa faceta ganhou ainda mais notoriedade quando passou a realizar ensaios abertos na Pitombeira. Nessas ocasiões, a presença do público não impedia sua cobrança: se o som não saía como ele queria, batia com força a baqueta no chão ou numa esteira de papelão, para que todos percebessem o erro.
"Quando o músico errava, ele pegava essa baqueta, batia e recomeçava. No início, as pessoas iam achando que era um espetáculo, mas era ensaio mesmo. Recomeçava quatro, cinco vezes, se fosse preciso", diz Juliano Cavalcanti.
Com sua batuta firme e sua sensibilidade musical, Maestro Lessa escreveu um capítulo importante do frevo de rua. Partiu como viveu: com disciplina, paixão e um ouvido sempre atento ao que a cidade pedia.
O velório do Maestro Lessa será nesta quarta-feira (23), às 11h30, no Morada da Paz Essencial da Av. Cruz Cagubá, em Santo Amaro. O cortejo segue para o sepultamento no Cemitério de Santo Amaro, às 15h.