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'O Estado mudou minha vida': a trajetória da defensora pública que tem como missão o recomeço para mulheres vítimas de violência

Débora Andrade lidera ações que garantem direitos, promovem segurança e incentivam a retomada da vida por mulheres em vulnerabilidade em Pernambuco

Por Raphael Guerra Publicado em 30/11/2025 às 8:00

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A defensora pública Débora Andrade tem como missão de vida levar justiça a quem mais precisa. E, nos últimos dois anos, o foco maior tem sido justamente as mulheres vítimas de violência que procuram socorro na Defensoria Pública do Estado de Pernambuco. A busca não é só por apoio jurídico, mas também por respostas à difícil pergunta: como recomeçar?

Débora sabe bem a importância do Estado na mudança de vida das pessoas, independentemente de classe social, cor ou faixa etária. Durante os anos em que estudou Direito e disputou uma vaga até ser aprovada e assumir o cargo de defensora pública estadual, ela não deixou de se questionar sobre o papel da Justiça e do Estado para a sociedade.

"A Justiça serve, afinal, para quê e para quem? Quando tratamos de igualdade, é mesmo verdade que todos são iguais em direitos e deveres?"

Essas perguntas, expostas a todos durante seu discurso de posse no cargo público, em 2021, continuam - talvez - sem respostas definitivas. Mas as reflexões surgidas a partir delas foram fundamentais para dar foco no objetivo de ser um meio para tentar garantir a dignidade de todos que precisam da assistência da Defensoria Pública.

Os questionamentos de Débora, voltados ao social, estão entrelaçados com a história de vida dela e com as conquistas alcançadas a partir do sonho da mãe. Nos últimos anos, a defensora entendeu a importância do Estado para reconstruir vidas e garantir oportunidades a todos.

Natural de Aracaju, em Sergipe, a defensora teve uma infância difícil com a família. Morava numa região de periferia e, quando os pais se separaram, a situação ficou ainda mais complicada. A mãe passou a fazer faxinas para sustentar a casa e garantir o básico aos filhos. Comida e estudo eram as prioridades.

"Com dez anos de idade, minha estrutura familiar começou a se desfazer. Fui incluída em um programa para crianças em vulnerabilidade chamado Criança Cidadã. Convivi com meninos que viviam na rua, vendiam no sinal, que moravam em invasão. Nesse projeto, me deparei com as restrições que a falta de dinheiro traz na vida das pessoas e comecei a perceber que, se eu não estudasse, não ia ter condições de mudar essa realidade", contou.

"Nessa época, minha mãe passou a trabalhar com serviços gerais na escola onde eu estudava para que eu não deixasse de estudar. Também começou a receber um auxílio do município de Aracaju, a fim de que eu pudesse continuar estudando e me dedicando a seguir a trajetória tão planejada nos sonhos dela. Decidi que o caminho do estudo seria o que ia transformar minha casa", relembrou.

No fim da adolescência, com incentivo de professores, Débora ingressou em um curso técnico.

"O Estado mais uma vez interveio na minha trajetória. Fui incluída em um programa de assistência social para ser uma espécie de menor aprendiz. E nessa época vários mentores, docentes e profissionais da escola [instituto federal] acabaram me adotando e me orientando para a vida", disse.

"Um professor de literatura disse que era possível romper com as castas sociais modernas e que eu poderia fazer direito, eu não estava proibida disso. Foi aí que o Estado mais uma vez interveio na minha história. Fui agraciada com uma bolsa do Prouni integral e, só por isso, consegui, cinco anos depois, ser a primeira de todas as gerações da minha família, com um total de 100 primos, a concluir um curso de ensino superior."

Mais tarde, conseguiu um feito ainda maior: tornar-se defensora pública.

"Quando conheci a Defensoria Pública, percebi que teria oportunidade de estar mais perto da mesma população de onde eu venho. Na história da minha família, minha mãe e minha avó sofreram violência doméstica, criaram os filhos sozinhas. De todas as carreiras do Judiciário, a Defensoria é a única que tem maior proximidade com a população vulnerável, sem recursos, que mora em periferia, que é apagada, esquecida", definiu Débora.

"Não existem pessoas vulneráveis. As pessoas são, sim, vulnerabilizadas pelo sistema ou pela ausência do Estado. É inevitável constatar que o acesso à justiça, à educação, à saúde, está intrinsecamente ligado ao seu poder financeiro, à sua classe, à sua raça e à sua cor. E a Defensoria Pública está posta nessa condição como uma instituição estatal que foi criada para subverter essa lógica", pontuou a defensora, hoje com 35 anos.

DESAFIO À FRENTE DO NÚCLEO DE DEFESA DOS DIREITOS DAS MULHERES

Desde julho de 2023, Débora coordena o Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem), no Recife, responsável por acolher, orientar e prestar assistência jurídica para efetivação da Lei Maria da Penha. Também trabalha na proteção dos direitos sexuais e reprodutivos e na elaboração de políticas públicas para a igualdade de gênero.

Núcleos semelhantes estão espalhados nas defensorias públicas estaduais do País, fazendo a diferença na vida de tantas mulheres ameaçadas, agredidas fisicamente ou que precisam de orientações sobre a rede de proteção para recomeçarem a construir histórias próprias.

Somente em Pernambuco, 34.832 queixas de violência doméstica/familiar foram registradas em delegacias entre janeiro e outubro deste ano. Quase metade das vítimas (47,4%) com idades entre 18 e 34 anos.

A preocupação no Estado tem se intensificado com o aumento dos casos de feminicídio. Nos dez primeiros meses do ano, foram 71. Um aumento de 16,39%, em comparação com o mesmo período de 2024, quando 61 mulheres foram vítimas.

"Normalmente, as mulheres chegam no núcleo bastante fragilizadas. O fenômeno da violência doméstica faz com que a vítima passe por reiteradas violências antes de fazer a denúncia. Isso porque é um tipo de crime em que o autor da ação é uma pessoa do seu afeto, da sua relação íntima. A mulher pondera, por inúmeras circunstâncias, como emocionais e financeiras, antes de resolver fazer a denúncia", afirmou Débora.

Só em 2025, o núcleo já atendeu mais de 12,5 mil vítimas de violência.

Henrique Paparazzo/Divulgação
Projeto voltado às mulheres para fortalecimento coletivo promoveu recente visita ao Instituto Ricardo Brennand, na Zona Oeste do Recife - Henrique Paparazzo/Divulgação

O Nudem tem feito a diferença na vida de mulheres que procuram ajuda. Ao longo deste ano, com a criação do Projeto de Formação de Grupo Reflexivo de Mulheres, vítimas de violência doméstica estão visitando espaços históricos e culturais, como forma de reconexão e fortalecimento coletivo.

"Muitas dessas mulheres vivem rotinas duras, e o contato com a cultura e a arte também é uma forma de cuidado, de respiro e de fortalecimento", explicou a defensora pública sobre recente visita ao Instituto Ricardo Brennand, localizado no bairro da Várzea, Zona Oeste do Recife.

O Instituto Ricardo Brennand, sem fins lucrativos, abriga um acervo artístico e histórico da coleção do industrial Ricardo Brennand, ocupando mais de 77 mil metros quadrados, cercados por uma reserva de mata atlântica preservada.

Nos encontros mensais, mulheres saem fortalecidas. "Aprendi a dizer 'não'. Não aceito pessoas que cheguem tóxicas juntos à minha pessoa, porque vivi um relacionamento muito tóxico. Hoje eu digo assim: 'eu sou feliz, eu me amo'. Tenho a plenitude de dizer que vou conquistar tudo ao meu alcance", relatou Maria Gomes, uma das mulheres assistidas pelo Nudem.

Defensoria Pública de PE
Passeio de catamarã pela área central do Recife proporcionou experiências de acolhimento e dignidade às mulheres - Defensoria Pública de PE

COMO PROCURAR AJUDA?

Além de procurar a delegacia mais próxima, a vítima de violência doméstica pode se dirigir ao Núcleo de Defesa da Mulher, da Defensoria Pública Estadual. O atendimento é presencial, de segunda à sexta-feira, das 8h às 16h. Não há necessidade de agendamento.

O núcleo fica no quinto andar do prédio da defensoria, localizado na Avenida Manoel Borba, nº 640, no bairro da Boa Vista, área central do Recife.

Em caso de violência, a mulher pode acionar imediatamente a Polícia Militar pelo número 190. Para orientações sobre a rede de proteção, também podem entrar em contato com a Ouvidoria da Secretaria da Mulher de Pernambuco: 0800.281.8187.

Mulheres também podem solicitar medida protetiva de urgência no site do Tribunal de Justiça de Pernambuco (portal.tjpe.jus.br). Com a ferramenta, não é necessário sair de casa para ir a uma delegacia ou contratar advogado ou advogada.

Na página inicial, é necessário rolar a tela até encontrar o ícone "Medida Protetiva Eletrônica" e, em seguida, clicar em "Iniciar Atendimento".

A resposta do juiz ou juíza à solicitação será enviada para o número de celular cadastrado pela mulher em um prazo de até 48 horas.

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