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Desafios virtuais se espalham e expõem crianças e adolescentes a violência sexual, automutilação e doenças mentais

Estudo diz que 54% da faixa entre 13 e 18 anos já foi vítima de crime sexual na internet. Pais têm papel essencial no controle do acesso dos filhos

Por Raphael Guerra Publicado em 10/06/2025 às 11:30 | Atualizado em 10/06/2025 às 11:33

Nas telas, imagens animadas e convidativas para jogos disputados em tempo real com participantes de todo o País - e até de outras partes do mundo. A interação seduz, vicia. E o tempo à frente do computador só cresce em casa. Na mesma proporção, aumentam os perigos à saúde física e mental.

Desafios virtuais se espalham e atraem crianças e adolescentes, que participam de bate-papos para fazer "amigos". Há casos, no entanto, em que criminosos colhem informações pessoais e imagens íntimas e usam a inteligência artificial para fazer alterações e ameaças de exposição das vítimas para outros milhares de usuários na internet. 

As marcas - como ansiedade, isolamento e depressão - podem durar a vida toda, conforme alertam os especialistas. Por isso, os pais precisam redobrar os cuidados com os conteúdos acessados pelos filhos em qualquer tipo de tela, seja computador, celular ou tablet. E, no primeiro sintoma de mudança de comportamento, procurar ajuda de um profissional da área de saúde mental. 

"Os dados que temos recebido sobre o espaço de circulação de crianças e adolescentes na internet são assustadores. Estudos têm demonstrado que há um universo desconhecido da imensa maioria de pais e educadores. Por vezes há um controle imenso da movimentação desse público infanto-juvenil nos ambientes reais, como ruas e avenidas, e um negligenciamento dos ambientes virtuais, que são infinitamente maiores e repletos de informações e contextos impróprios", pontuou a psicóloga e mestre em psicologia Ana Cristina Fonseca, do Centro Universitário Frassinetti do Recife (UniFafire). 

O novo levantamento da ChildFund Brasil, uma das organizações mais respeitadas do mundo, apontou que 54% dos garotos e garotas entre 13 e 18 anos no País já foram vítimas de violência sexual no ambiente virtual, o que corresponde a uma estimativa de 9,2 milhões. Os casos ocorreram com ou sem a interação de um agressor.

Foram ouvidos cerca de 8,5 mil adolescentes no País, sobretudo das regiões Nordeste e Sudeste. A pesquisa apontou que, com o aumento da idade, cresce o tempo de uso da internet e a variedade de aplicativos, o que eleva em até 1,3 vezes o risco de violência online para jovens de 17 e 18 anos em comparação aos de 15.

"[O resultado] demonstra claramente que os adolescentes não se sentem seguros na internet e não sabem como denunciar casos de violência. Também revela que eles não têm acesso à educação digital estruturada que os ensine a navegar com segurança", avaliou Mauricio Cunha, diretor do ChildFund Brasil e doutor em políticas públicas.

Valter Campanato/Agência Brasil
Em média, os adolescentes passam quatro horas diárias conectados, principalmente pelo celular e fora do contexto escolar - Valter Campanato/Agência Brasil

Se o tempo de tela nas escolas foi reduzido às atividades exclusivamente pedagógicas e com acompanhamento dos professores - como determina a lei federal -, nos lares a realidade é diferente para muitos estudantes, independentemente de classe social.

Em média, os adolescentes passam quatro horas diárias conectados, principalmente pelo celular e fora do contexto escolar. Os resultados indicaram uma predominância de hábitos on-line entre eles: 79% dos hobbies mencionados são digitais, e apenas 21% envolvem atividades off-line, como passear ou praticar esportes. 

"Nos congressos de psiquiatria, a preocupação sobre o aumento do uso de telas é constante, por causa das implicações tanto à saúde física quanto mental. A fase da infância e da adolescência é de descobertas, amadurecimento e formação de características. Abrir mão de atividades, como a interação com outras pessoas, para passar mais tempo no mundo virtual não é o ideal no desenvolvimento", disse o médico psiquiatra Ezron Maia Emidio, especialista em infância e adolescência e membro da diretoria da Sociedade Pernambucana de Psiquiatria.

Ezron pontuou que o ambiente virtual foi criado para trazer benefícios à vida das pessoas, mas também tem sido usado, cada vez mais, para o mal. 

"A rede deu oportunidade para ser usada com maldade, com agressividade, porque as pessoas sentem que estão protegidas pelo anonimato. Os pais sempre aconselhavam os filhos a não falarem com 'estranhos' na rua e tentavam acompanhar isso de perto. No ambiente virtual, porém, não há esse controle. O 'velho do saco' [lenda urbana semelhante ao bicho-papão] agora é tecnológico", exemplificou. 

O psiquiatra reforçou que, sobretudo no caso das crianças, muitas só percebem ter sido vítimas de crimes sexuais na internet quando estão mais velhas.

"A rede virtual é mais sutil, com pequenas mensagens. Isso causa conflitos às crianças e adolescentes para julgar o que é correto. Os pais precisam estar atentos à mudança de comportamento, como a irritabilidade, o choro fácil e questioná-los sobre isso. A mente se expõe, se manifesta, e é possível perceber", afirmou. 

MAIS DE 200 VÍTIMAS COM LESÕES NO CORPO E NA MENTE

Na última semana, um adolescente de 17 anos foi apreendido na Região Metropolitana do Recife por suspeita de liderar um grupo especializado em crimes na internet, como pornografia infantil, estupro virtual e cyberbullying.

A investigação demonstra que até mesmo a faixa etária mais atingida por esses crimes virtuais também é atraída para disseminar perigos a outros garotos e garotas. 

De acordo com a Polícia Civil de Pernambuco, o grupo abordava e manipulava os adolescentes e crianças para que enviassem conteúdo íntimo, posteriormente utilizado para chantagem e incentivo à automutilação, por meio de desafios - com transmissão ao vivo pelas redes sociais.

"O grupo glorifica a violência e desumaniza as vítimas. Eles são sádicos, sentiam prazer ao praticar esses atos violentos. Atuavam com perversidade extrema, instrumentalizando a internet para violar direitos fundamentais e destruir vidas", afirmou o delegado Joel Venâncio, que comandou as investigações a partir de dados enviados pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Avalia-se que mais de 200 crianças e adolescentes tenham sido vítimas em todo o País. Além das lesões pelo corpo, parte desses garotos e garotas passou a apresentar fortes sintomas de ansiedade e depressão, chamando a atenção dos pais.

Ao mesmo tempo, em relatos, muitos tutores confessaram que deixam os filhos livres para usar telas, sem acompanhamento - seja por falta de tempo ou por considerarem não haver riscos. 

ADOLESCENTES NÃO SABEM COMO PEDIR AJUDA

Na pesquisa da ChildFund Brasil, 94% dos adolescentes disseram ter recebido alguma orientação sobre o uso da internet, mas não sabem como proceder em situações de risco de violência. A reação mais comum, segundo eles, é o bloqueio de perfis suspeitos, em vez da formalização de denúncias com o apoio dos pais - contribuindo para a subnotificação dos crimes.

"Deixar sem supervisão e sem orientação as crianças e adolescentes é negligenciar a educação deles. Não devemos ter receios de conversar e explicar os riscos a que estamos todos expostos, pntuando que a tecnologia tem seus benefícios, para não criar fantasmas desnecessários. Mas que, assim como os ambientes nos quais circulamos no convívio social, é necessário conhecer os perigos do universo virtual", disse a psicóloga Ana Cristina Fonseca.

A especialista citou o livro "A Geração Ansiosa", de Jonathan Haidt, que chama a atenção para as experiências ofertadas ao público mais jovem sem que saibamos quais as consequências a longo prazo, "mas com dados epidemiológicos já apontando para o forte impacto na saúde mental".

A especialista reforçou, no entanto, que os pais não devem proibir o uso de telas.

"É preciso apresentar como funciona, quais as possibilidades e cautelas. Estamos todos expostos a experiências que não estão seguindo as leis de respeito e proteção de crianças e adolescentes. Experiências de uma 'terra sem lei' podem causar muitos danos, pois nem sempre sabemos que interesses estão em jogo", afirmou.

INSTAGRAM COMO APLICATIVO MAIS INSEGURO

A pesquisa da ChildFund Brasil identificou 14 formas de violência vivenciadas por adolescentes em ambientes digitais, divididas em quatro categorias: privacidade e segurança, ameaças e assédio, conteúdo sensível e discussões online.

As violações mais recorrentes incluem invasão de contas, pedidos de fotos e dados pessoais, bullying, comentários ofensivos e exposição em grupos. Entre os ambientes virtuais mais citados como inseguros, o Instagram lidera com 68% das menções, seguido pelo jogo Roblox, com 12%.

Também foram destacados os riscos do jogo Free Fire, associado ao assédio verbal, e do TikTok, com exposição a conteúdos inadequados.

O estudo recomendou ações integradas para conscientizar e prevenir, como canais de denúncia acessíveis, campanhas educativas sobre privacidade, apoio emocional em escolas e capacitação de pais e educadores para identificar e acolher sinais de sofrimento.

Thiago Lucas/ Design SJCC
Orientações aos pais sobre uso da internet pelos filhos - Thiago Lucas/ Design SJCC

O PAPEL DA ESCOLA TAMBÉM É FUNDAMENTAL

Para o pedagogo e mestre em educação José Paulino Peixoto, o estudo da violência sexual contra crianças e adolescentes no ambiente virtual aponta para a urgência de políticas públicas de regulação de redes sociais, criação de ações mais severas de criminalização dos programadores de sites e criadores de aplicativos.

"No âmbito escolar, seria importante incorporar conteúdos no currículo que abordassem a educação midiática ou uso de mídias. Mesmo que já estejam contemplados nas competências gerais da BNCC [Base Nacional Comum Curricular], ainda são pouco explorados nas práticas escolares", avaliou. 

"Também cabe à família uma maior vigilância e controle do que as crianças acessam e um diálogo franco sobre os riscos e consequências que isso poderá acarretar. Os desafios são grandes, mas a educação é uma alternativa no processo de conscientização", disse.  

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