Estudo revela que ‘boa intenção’ da indústria da bebida sobre perigos da mistura álcool e direção prejudica mais do que ajuda
As campanhas e mensagens das empresas acabam suavizando a percepção sobre o consumo de álcool, sem efetivamente reduzir os danos no trânsito

Um estudo recente da Vital Strategies, organização global que atua para promover a saúde pública em parceria com governos, comunidades e organizações mundiais, revelou que a ‘boa intenção’ da indústria do álcool ao realizar campanhas e destacar mensagens pelo consumo consciente de bebidas alcoólicas por condutores de veículos prejudicam mais do que ajudam. A análise constatou que elas são ineficientes e terminam estimulando o consumo de álcool pela sociedade.
Além de não seguir as melhores práticas de comunicação em segurança viária, as campanhas e mensagens acabam suavizando a percepção sobre o consumo de álcool, sem efetivamente reduzir os danos no trânsito. Ou seja, em vez de proteger vidas, contribuem para mais pessoas beberem achando que, consumindo ‘com moderação’, não colocam a sua vida e a dos outros em riscos ao assumir a condução de um veículo motorizado.
Vale lembrar que a direção sob efeito de álcool é um dos principais fatores de risco para sinistros de trânsito (não é mais acidente de trânsito que se define, segundo o CTB e a ABNT). Está presente em 27% das ocorrências registradas e que deixam entre 20 a 50 milhões de feridos no mundo a cada ano. “Para reforçar sua imagem de responsabilidade social, a indústria do álcool financia campanhas sobre o tema. Mas elas não têm provocado o efeito esperado. Ao contrário. A indústria do álcool prioriza o lucro, enquanto a saúde pública prioriza as pessoas”, alerta Sandra Mullin, vice-presidente de Política, Advocacy e Comunicação da Vital Strategies.
A vice-presidente destaca que uma campanha independente e bem executada pode reduzir os sinistros de trânsito em até 13% e salvar vidas. “As campanhas de mídia desempenham um papel essencial nos esforços de saúde pública para reduzir a direção sob efeito de álcool. Mas quando elaboradas com mensagens fortes, executadas de forma eficaz e combinadas com outras estratégias comprovadas, como a fiscalização reforçada”, explica.
PADRÕES E ESTRATÉGIAS A SEREM SEGUIDOS NAS CAMPANHAS SOBRE ÁLCOOL E DIREÇÃO
No estudo, a Vital Strategies alerta que a Organização Mundial da Saúde (OMS) apresenta diretrizes para a forma correta de realizar campanhas educativas focadas, de fato, na redução do consumo de álcool por condutores. As diretrizes integram o pacote técnico SAFER, um recurso disponível para governos em todo o mundo.
“Estudos mostram que campanhas eficazes de saúde pública são fundamentadas em pesquisas e teorias de mudança de comportamento. Para campanhas eficazes sobre direção sob efeito de álcool, as melhores práticas incluem mensagens que destacam as graves consequências da condução alcoolizada, evocam fortes emoções e associam o consumo de álcool a sinistros”, reforça Sandra Mullin.
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O estudo também aponta que campanhas eficazes apresentam personagens com os quais o público se identifica, evitam a estigmatização e utilizam narrativas realistas e sérias. Segundo a Vital Strategies, essas diretrizes foram desenvolvidas com base em uma década de estudos sobre testes de mensagens conduzidos por meio do Projeto RS-10 da OMS e da Iniciativa Bloomberg para a Segurança Viária Global em 20 países da África, América Latina e Ásia.
AS PRINCIPAIS FALHAS IDENTIFICADAS NOS ANÚNCIOS DA INDÚSTRIA DO ÁLCOOL
Os pesquisadores analisaram 32 anúncios em vídeo sobre os efeitos do álcool ao volante patrocinados pela indústria, veiculados em 14 países entre 2006 e 2022. Entre os achados, a glamourização do consumo de álcool e a resistência em mostrar, de forma realista, as consequências da mistura bebida alcoólica e direção. Confira os principais achados:
- Em 61% dos anúncios, o consumo de álcool foi glamourizado e associado a situações aspiracionais, como celebrações, inclusão social e demonstração de status social ou financeiro;
- A maioria dos anúncios (56%) não mostrou as consequências da direção sob efeito de álcool;
- O consumo de álcool foi retratado na maioria dos anúncios (73,5%), sendo de forma explícita em 56,3% dos casos (quando o álcool é comprado, segurado ou servido) e de forma implícita em 17%;
- Celebridades, incluindo atores, músicos, pilotos de corrida e outros atletas profissionais, apareceram em quase metade (49%) dos anúncios;
- 87% dos anúncios incluíam alternativas para evitar a direção sob efeito de álcool, como o uso de transporte público ou a escolha de um motorista designado, apesar das evidências demonstrarem que o conceito de "consumo responsável" varia entre indivíduos e é amplamente ineficaz;
- Nenhum dos anúncios utilizou tons que evocassem emoções negativas ou transmitissem claramente as consequências da direção sob efeito de álcool;
- Em aproximadamente um terço (31%) dos anúncios, o chamado à ação, como "se beber, não dirija", não estava alinhado com o conteúdo apresentado.
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“Os anúncios da indústria sobre direção sob efeito de álcool criam uma falsa sensação de compromisso com a segurança viária, mas não atendem aos padrões de comunicação eficazes”, analisa Irina Morozova, Diretora do Programa de Comunicação para Segurança Viária da Vital Strategies.
ESTUDO TAMBÉM FAZ RECOMENDAÇÕES PARA CAMPANHAS MAIS CONSCIENTES
O estudo da Vital Strategies também faz recomendações estratégicas para campanhas mais conscientes e eficientes para desestimular o consumo de álcool por quem dirige. E o foco é, predominantemente, governos e ONGs.
“Muitos governos e ONGs colaboram com a indústria do álcool devido às limitações de recursos em agências públicas. No entanto, essas parcerias frequentemente têm um custo: embora ofereçam financiamento de curto prazo, acabam comprometendo intervenções baseadas em evidências”, alerta Sandra Mullin.
Em vez de depender de iniciativas da indústria, o estudo recomenda que os governos invistam em estratégias independentes e comprovadas que priorizem a segurança pública. Confira as recomendações:
Governos, órgãos de transporte e defensores da saúde pública devem reconhecer que os anúncios da indústria sobre direção sob efeito de álcool funcionam como ferramentas de marketing para promover o consumo de álcool, em vez de prevenirem danos de forma eficaz.
Governos devem evitar parcerias com a indústria do álcool e proibir que empresas patrocinem campanhas sobre direção sob efeito de álcool, garantindo que os esforços de saúde pública permaneçam independentes e baseados em evidências.
Governos locais e nacionais devem integrar a comunicação às estratégias abrangentes de segurança viária e alocar financiamento sustentável e de longo prazo, para que esses esforços não dependam de contribuições da indústria do álcool.
Campanhas midiáticas destinadas a reduzir comportamentos de risco, incluindo a direção sob efeito de álcool, devem seguir as melhores práticas, utilizando mensagens baseadas em dados e pesquisas comportamentais.
Conheça a Vital Strategies: www.vitalstrategies.org.