A metáfora e a investigação da realidade na literatura de Jeferson Tenório
Autor do vencedor do Jabuti O Avesso da Pele, o escritor participou da XV Bienal Internacional do Livro de Pernambuco na última terça-feira (7)
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A Bienal Internacional do Livro de Pernambuco chega na metade da sua 15ª edição, cumprindo a proposta de reunir leitores, autores e criadores de conteúdo em um espaço de fomentação de diálogos e trocas de conhecimento. Para isso, o evento prepara uma série de mesas de conversa, abertas ao público, que debatem obras, trajetórias de escritores, gêneros literários, mercado e tendências. Uma delas, desenrolada na última terça-feira (7), trouxe Jeferson Tenório, autor de O Beijo na Parede, Estela sem Deus, O Avesso da Pele e De onde eles vêm — publicados nesta ordem, para encontrar seus leitores e discutir sobre seus trabalhos, especialmente sua publicação mais recente, que está entre as finalistas do prêmio Jabuti na categoria Romance Literário.
Não é sua primeira vez no Recife. O autor já passou férias na capital pernambucana, se encontrou com admiradores em outros eventos literários e viaja à cidade através de suas conversas com o também escritor Marcelino Freire, que é um grande amigo. Para Jeferson, convenções como a Bienal de Pernambuco são muito significativas para o cenário literário nacional, porque elas questionam o centro e a margem, trabalham a noção de que regiões de fora do Sudeste também são determinantes no meio, recebem atenção e público e, com isso, afetam o mercado brasileiro de maneira geral: “Eu acho que é um momento importante, justamente porque desloca toda aquela ideia de que as Bienais só funcionam no eixo Rio-São Paulo”. E os dados sustentam esse pensamento: em 2023, o evento contou 120 lançamentos de livros, 300 atividades culturais e impacto econômico superior a R$ 18 milhões. Este ano, o primeiro fim de semana de celebração já reuniu milhares, e a semana que se segue deve continuar juntando uma multidão de leitores que desejam conhecer novas obras e conversar com seus autores favoritos.
O bate-papo com Jeferson foi desses momentos, cheio de leitores unidos em um auditório para ver mais de perto o homem por trás das obras, conhecer seu processo criativo, conversar sobre suas histórias e personagens e adentrar de novo seu universo metafórico que usa a ficção para investigar a realidade, mas, desta vez, fora das páginas, cara a cara. No trabalho do autor, traços brutais do real são costurados com invenções, criando narrativas que, embora imaginadas, são muito concretas. “Quando a gente decide escrever uma história, a gente acaba pegando coisas que são conscientes e outras que são inconscientes, né? Então eu escrevo misturando as coisas que eu li, as coisas que eu vivenciei, experienciei, ou pessoas próximas e pessoas não tão próximas assim. E aí eu misturo tudo. Então, por exemplo, pode ter um personagem que tenha características de três pessoas que eu conheci. Não é, tipo, ‘eu vou pegar essa personagem aqui e ela vai ser exatamente igual a pessoa’. Se eu fizer isso, aí não vira literatura”, explica ele. Há vivências muito verdadeiras nessas histórias. Sua escrita soa as recordações de Pedro, que em O Avesso da Pele reconstitui a narrativa dos pais mesclando certezas e imaginação. Diz que “é inventando que consegue ser honesto”.
Do hip hop ao romance
A entrada de Jeferson no mundo literário, como autor publicado, chegou depois dos 30 anos, mas esse fazer já estava presente na sua infância e adolescência, como uma escrita de si através de diários. Esses relatos eram primariamente um registro de acontecimentos, que não carregavam a ambição de se tornar literatura. Aos 24 anos, ele entrou no curso de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, época em que começou a se aproximar mais da leitura e passou a escrever poesias, mas sua história com a rima teve início no grupo de hip hop Magma Rap, do qual ele fez parte por um curto período de tempo, antes da faculdade. Antes de chegar nos romances, gênero com o qual ele se sente mais à vontade, o autor também passou pelos contos.
Em 2013, Jeferson publica seu primeiro romance, O Beijo na Parede. É com a publicação de seu segundo livro, Estela sem Deus, que ele enxerga com mais clareza a construção do seu universo: “Comecei a perceber que eu estava escrevendo, na verdade, para um público jovem. Um público que talvez não é um público leitor. E depois do Estela Sem Deus eu entendi que eu tinha um projeto literário e que esse projeto tinha a ver com a formação de leitores. Por isso que os meus livros têm essa linguagem, digamos, mais fácil”.
A identidade da literatura do escritor também perpassa por sua história, trazendo alguns personagens que, como ele, viveram parte da vida no Rio de Janeiro e se mudaram para o Rio Grande do Sul ainda jovens. As narrativas exploram o racismo estrutural no Brasil — e especialmente na região Sul, em que essas figuras, como pessoas negras, têm seus afetos, sua autoestima e sua relação com o mundo afetados pelo preconceito. Como professor, Jeferson também coloca sua experiência no campo educacional em suas obras. Em O Avesso da Pele, por exemplo, Henrique é um professor negro que, além de lidar com olhares de estranhamento por ocupar a posição que ocupa, enfrenta diariamente o desmonte da educação pública no país. O livro De onde eles vêm também aborda o ensino, mas numa perspectiva de acesso ao nível superior, trazendo o contexto dos primeiros cotistas nas universidades brasileiras.
Território na literatura
A identidade negra é muito presente no trabalho de Jeferson, e, para ele, em determinadas circunstâncias, é interessante classificar suas obras, falar sobre literatura negra: “Toda a produção que não está de acordo com o que a gente julgava como universal, vai ser nomeada, então deixa de ser só literatura e passa a ser literatura alguma coisa, né? Eu acho que politicamente é importante que em alguns momentos a gente tenha essa classificação. Acho que é importante dizer que existe literatura de autoria feminina, importante dizer que existe autoria negra, que existe autoria LGBT. Eu acho que é uma forma de você ganhar território e dizer que todas as pessoas podem fazer literatura. Mas claro que a gente tem que se encaminhar justamente para que todas as literaturas sejam reconhecidas como universais, então, em alguns momentos, a classificação não faz sentido”, afirma.
O autor explica que determinados campos da sociedade têm maior dificuldade para aceitar outros pontos de vista, mas que, nos últimos anos, percebe um aumento no interesse por trabalhos feitos por mulheres, pessoas negras e indígenas, por exemplo. Sobre esse público, ele destaca que tem observado uma mudança de perfil nos frequentadores de eventos como as bienais. Desmentindo a ideia de que "os jovens não querem ler", esses encontros mostram que há uma grande procura dessa faixa etária por literatura.
Apesar do crédito dado a literaturas mais diversas, que falam sobre vivências de grupos minoritários, Jeferson ainda precisa enfrentar situações de censura que estão muito relacionadas com as temáticas sobre as quais ele escreve. “Já recebi ameaças de morte, intimidações, censura em escolas em alguns estados e também a suspensão da conta do Instagram”, disse ele. No início de junho, o autor recebeu um aviso de que seu perfil na rede social havia sido desativado. Mesmo seguindo os procedimentos necessários para reativá-lo, o problema não foi resolvido e ele foi informado que a razão do banimento teria sido a falta de enquadramento com as diretrizes da plataforma. “O processo ainda tá rolando, é algo bastante demorado. Não sabemos ainda quando isso vai terminar, mas isso só mostra o quanto a gente vive ainda num momento bastante difícil, em um país que não aceita a pluralidade de vozes e aí tenta de alguma forma trazer esses tipos de silenciamento. O bom é que tá todo mundo atento quanto a isso, eu acho que eu tenho recebido muito apoio. E eu acho que o exemplo de O Avesso da Pele mostrou o quanto é possível a gente combater essa ideia de censura”, continuou, mencionando seu terceiro livro, que chegou a ser censurado em escolas do Mato Grosso do Sul, de Goiás e do Paraná, com a justificativa de que a obra teria conteúdos inadequados para menores de 18 anos. Semanas depois, a decisão foi revisada e os livros voltaram às bibliotecas do ensino público.
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Reconhecimento e projeção
A maneira como Jeferson provoca as estruturas dominantes do Brasil podem causar desconforto em determinados campos, mas é também por meio desses incômodos que sua literatura ganha força, destaca a importância de colocar o dedo na ferida, dar nome às coisas e investigar as consequências do racismo estrutural. Essa força coloca o autor como uma das figuras mais importantes da literatura brasileira contemporânea, com cada vez mais projeção e reconhecimento dentro e fora do país.
Neste ano de 2025, ele participou do festival Étonnants Voyageurs, um dos encontros literários mais importantes da Europa, realizado em Saint-Malo, na França. O Avesso da Pele possui tradução em francês, além de idiomas como o inglês e o italiano. “A literatura brasileira, de modo geral, tem chegado nos países ainda de maneira muito tímida. Embora a Biblioteca Nacional tenha incentivos de tradução, ainda é pouco [...] E na França, que é considerado um dos países que mais lê no mundo, a disputa por atenção de determinados livros é muito grande. Então, quando um livro é traduzido na França já é motivo de alegrias, porque são muitas barreiras até você conseguir fazer com que uma editora se interesse, fazer com que os leitores franceses também se interessem”, explica Jeferson. Ele destaca que teve uma ótima recepção no país e se sentiu honrado ao encontrar muitas pessoas que conheciam seu trabalho.
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No Brasil, Jeferson também acumula reconhecimento e prêmios, como o Jabuti de Melhor Romance Literário em 2021, por O Avesso da Pele. De onde eles vêm está entre os finalistas da mesma premiação este ano. Ele diz que concursos literários são sempre uma caixinha de surpresas: “Todos os cinco que chegam nesse momento merecem ganhar. Os critérios são muito subjetivos, então a gente não sabe exatamente como isso acontece. Eu já fui jurado do Jabuti e é algo extremamente difícil, você ter ali cinco livros são magníficos, mas você precisa escolher um”. Feliz com mais uma indicação, ele celebra o seu e o trabalho dos demais finalistas, como o de seu amigo Marcelino Freire, que compete por Escalavra e o de Chico Buarque, com Bambino a Roma. Sua presença nesses meios, além de tudo, valida a pluralidade de vozes em um país que, apesar de o oferecer muito apoio, permanece marcado por tentativas de silenciamento.