‘Springsteen: Salve-me do Desconhecido’ é um estudo de personagem promissor, mas tem seu potencial sugado por uma construção de mundo morta
A biografia de Bruce Springsteen, dirigida por Scott Cooper e protagonizada por Jeremy Allen White, estreia nos cinemas brasileiros em 30 de outubro
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Bruce Springsteen, voz e coração por trás de clássicos de sucesso do rock como 'Hungry Heart', 'Born in the U.S.A.' e 'Atlantic City', ganhou a cinebiografia ‘Springsteen: Salve-me do Desconhecido’, dirigida e roteirizada por Scott Cooper que estreia nos cinemas brasileiros na próxima quinta-feira, dia 30 de outubro. Embora o longa trabalhe de maneira breve aspectos de formação do artista, a trama retratada se prende a um espaço de tempo mais específico: o período de composição e produção do sexto álbum do astro, ‘Nebraska’.
A ideia é destrinchar parte da vida desse músico que, por trás da fama, guarda um passado conturbado e um histórico familiar instável que acarretam dificuldades para se relacionar e se expressar emocionalmente. É por meio das faixas do ‘Nebraska’, divisor de águas em sua carreira, que Springsteen consegue exteriorizar seus sentimentos sobre si e sobre o mundo, nas letras, nos instrumentos, nos ecos e nas imperfeições. Só que o que poderia resultar em um ótimo estudo de personagem, com uma boa performance de Jeremy Allen White no papel principal, acaba caindo num formato que dissolve a singularidade da proposta, em que tudo gira tão em torno da figura do protagonista que o mundo ao seu redor parece morto e irrealista — irônico quando se trata de uma história baseada em fatos.
Performances e construção de personagem
Como esperado de um ator à frente de um personagem inspirado em um músico real, White passou por uma preparação intensa para interpretar Springsteen, estudou, dominou a guitarra e se dedicou a evocar a força da voz do artista. É ele mesmo quem canta as canções que aparecem no longa e há valor nesse cuidado. Outras grandes cinebiografias musicais, como Bohemian Rhapsody, demonstram menos empenho no mergulho do intérprete na persona — aqui, Rami Malek não faz os vocais principais de Freddie Mercury, embora tenha vencido o Oscar de Melhor Ator em 2019.
Para além do esforço em conjurar a musicalidade de Springsteen, o ator faz um ótimo trabalho na construção de um personagem traumatizado, perfeccionista e obsessivo que é constantemente atormentado por lembranças do passado, memórias estas que surgem vez ou outra em formato de flashbacks. Introvertido e reservado, ele encontra na música sua maneira de, de alguma forma, ressignificar suas vivências pessoais e familiares, que estão diretamente ligadas à sensibilidade da mãe e à esquizofrenia e violência do pai. Em expressões, olhares e pequenos gestos, somos convencidos de quem ele é. Nesse sentido, a escolha de Jeremy Allen White, que foi feita por Cooper, é um dos pontos mais fortes do longa. Essa seleção não foi em vão, já que, além de realmente remeter à fisionomia de Springsteen, o intérprete já tem experiência com figuras de personalidade e história semelhantes, a exemplo do seu maior sucesso, Carmy, na premiada série The Bear.
Em contrapartida, enquanto o protagonista pode ser destacado como uma qualidade, a construção dos demais personagens da trama deixa bastante a desejar. Claro que Springsteen é, e deve ser, a figura central aqui, mas isso não é sinônimo de acabar com a individualidade dos outros que circundam a narrativa. A vida desses personagens gira, irritantemente, em torno do astro. Nas poucas vezes em que a direção se debruça em seus momentos pessoais, eles estão falando ou pensando em Springsteen.
Um dos exemplos disso é a figura do agente do músico, Jon Landau, vivido por Jeremy Strong. A função desse personagem é ser seu amigo e defendê-lo, e é essa toda a sua personalidade. Nas horas de intimidade, ao lado da esposa, Jon só fala sobre o artista. Esses momentos são o artifício encontrado pelo roteiro para colocar em palavras como Springsteen se sente. O agente é uma espécie de tradutor daquilo que White manifesta com o corpo. Só que esse recurso, além de parecer preguiçoso, simplesmente não é necessário. Para além da fala, o mundo interno do protagonista é muito claro, tanto pelo trabalho do ator que o interpreta quanto pela própria construção da trama. Ter alguém para, aleatoriamente, dizer o que se passa na cabeça dele torna-se redundante.
Uma outra personagem cuja história é morta e só respira em função de Springsteen é Faye, sob a atuação de Odessa Young. Com ela, o músico vive um romance conturbado e negligente. Ele não aprendeu a se relacionar de forma honesta e vulnerável, por isso, não consegue se entregar a uma relação com ela. O dever dessa personagem parece ser simplesmente servir de estante para que determinadas características do protagonista sejam exploradas e exibidas. Ela só existe quando está com ele ou procurando por ele.
Novamente, é importante levar em consideração que esta é uma cinebiografia focada em apenas uma figura e que esses personagens realmente fizeram parte da história de Springsteen, sendo apresentados sob o seu ponto de vista. No entanto, essa insistência em mostrá-los tão focados no músico para além de qualquer outra coisa mesmo em cenários e contextos em que ele não está presente, os torna consideravelmente rasos. É como se o mundo ao redor de Springsteen estivesse morto quando ele não é o assunto e isso acaba, consequentemente, também matando parte dele mesmo e do trabalho de White, que soa menos genuíno.
Som e imersão
Um outro ponto de destaque da cinebiografia, quase que exclusivo da experiência de assisti-la em um cinema, é o som. Há instantes de muito destaque da sonoridade, em que o volume vai lá para cima e imerge o espectador na trama, seja em momentos de música ou de intensidade dramática. Em um deles, Springsteen, em meio a uma crise, acelera o carro em uma estrada e o barulho do motor rasga os alto-falantes da sala. Esse é um artifício muito eficiente na hora de enfatizar a força da ansiedade que ele sente, com esse som que naturalmente evoca velocidade e, elevado às alturas, potencializa a sensação.
Especialmente no início do filme, o som é um recurso bem importante nas transições. Nesse começo, ele serve como ponto comum na passagem de uma cena corriqueira para a de uma performance musical, com Springsteen emitindo um som repetitivo que logo se mescla à bateria do show, dando uma dimensão a mais aos cortes. É um mecanismo bem interessante, uma pena que ele é esquecido no decorrer da história.
Mais do mesmo
No fim das contas, Springsteen: Salve-me do Desconhecido, é uma cinebiografia que pode até ser lembrada por um ou outro aspecto, mas que não se destaca entre tantas, positivamente ou negativamente. A jornada do músico nessa exploração de si mesmo é feita de forma clichê, sem muitos riscos, e é finalizada quase que com pressa. O fim do longa até tenta levar o espectador a se emocionar, conforme indicam a natureza da trilha sonora e o diálogo íntimo entre pai e filho, mas é um pouco difícil se solidarizar com a decisão de um personagem quase sempre retratado como agressivo e distante de finalmente ser uma figura paterna. É um encerramento morno para um filme morno. No entanto, esta é uma cinebiografia que deve agradar os fãs de Springsteen, tanto pela dedicação de Jeremy Allen White, quanto — especialmente — pelos bons momentos de performance musical.