"Perrengue Fashion" prova que é possível fazer comédia sem falas datadas, mas possui problemas
Dirigido por Flávia Lacerda, o filme estreia em todos os cinemas brasileiros no dia 9 de outubro, com Ingrid Guimarães, Rafa Chalub e Filipe Bragança

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*Esta matéria contém spoilers
O mundo, atualmente, é digital. As pessoas vivem em uma era na qual não existe momento guardado apenas para elas mesmas: tudo é compartilhado nas redes sociais. Muitas vezes, elas esquecem de viver o agora para pensar no que pode render uma postagem no futuro.
Agora imagina se esse mundo tão digitalizado, não está só dentro da sua casa, como é a sua mãe? Essa é a história de "Perrengue Fashion", comédia que faz uma alusão à era moderna e de influencers.
Com estreia prevista para o dia 9 de outubro e classificação indicativa para maiores de 14 anos, o filme mostra Paula Pratta (Ingrid Guimarães), uma mãe de 50 anos, que segue carreira de influenciadora digital da moda. Ao chegar um convite da Gucci, marca que sempre sonhou em trabalhar, Paula precisa convencer o filho, totalmente reservado, que não suporta aparecer nas redes, a fazer uma campanha de Dia das Mães junto a ela.
O longa-metragem é dirigido por Flávia Lacerda, que participou da direção de "O Auto da Compadecida 2", e tem o roteiro assinado pela própria Ingrid Guimarães, além de Marcelo Saback, Célio Porto e Edu Araújo. O filme também marca a primeira produção brasileira Amazon MGM Studios para as salas de cinema, com distribuição da Paris Filmes e Downtown Filmes.
Um retrato das comédias de antigamente
"Perrengue Fashion" começa como quase uma versão que o público já está cansado de ver nos cinemas: comédias antiquadas, que tentam se apropriar de uma linguagem mais recente (da Geração Z) para atingir outras massas. Só que, ao longo do filme, dá para perceber que não é bem assim.
Paula Pratta é uma mulher que sonha em estar no topo da pirâmide dos criadores de conteúdo fashion. Desde pequena, a personagem demonstra um apego pelo mundo das grifes. Sempre trabalhou muito para construir o que ela tem atualmente.
Logo no início, é mostrado que a mulher não tem muito um viés muito sustentável - em todos os sentidos. E o mundo dela cai quando ela descobre que o próprio filho largou os estudos na Universidade de Stanford para viver o ativismo ambiental em Manaus, no Amazonas. Junto a isso, ela precisa que o filho participe do maior projeto que ela já recebeu: uma campanha de Dia das Mães para a Gucci.
Então, Paula vai decidida em busca de Cadu (Filipe Bragança), com o intuito de trazê-lo de volta para casa. Acompanhada do assistente Taylor (Rafa Chalub), ela embarca em uma aventura no meio de uma comunidade ecológica e autossustentável. Chegando lá, eles conhecem Lorenzo (Michel Noher) e Luciana (Késia Estácio), os dois "líderes" da comunidade, que acabam ajudando a mãe e o filho a se reconciliarem.
Em um conflito de dois mundos totalmente diferentes, Cadu e Paula têm que encontrar, nas próprias diferenças, algo em comum. Por um lado, se tem uma mulher que não entende nada da natureza, de sustentabilidade e de consciência ambiental. De outro, um filho que sempre lutou para ter um propósito de vida maior, amante de tudo que é natural.
Será que dá certo?
Pelo gênero do filme, já dá para perceber que não vai dar. Porém, eles, no fim, dão um jeito. O enredo é leve e consegue arrancar risadas sinceras dos telespectadores.
Essa foi a estreia de Rafa Chalub como protagonista em um longa-metragem. Ele, que era conhecido como "Esse Menino", tem um lado humorístico desde a pandemia, quando viralizou com um vídeo sobre a vacina Pfizer.
Para um primeiro trabalho, é uma atuação boa. Como já citado, o início do filme faz parecer que será aquele tipo de comédia cheia de gírias atuais, que muitas vezes só são jogadas no meio dos diálogos para parecer um filme "atualizado". Porém, ao passar as cenas, percebe-se que Rafa é apenas ele mesmo atuando.
Muito do humor dele fora das telas, que não se pode negar que seja um humor mais atual e mais geracional, está presente nesse personagem. E, com o tempo, o público se acostuma. É bem divertido ver Chalub atuando. Com mais experiência, ele pode se tornar uma grande conexão entre os amantes de comédia da velha guarda e da nova geração.
Filipe Bragança é, definitivamente, um ator. Sem muitos elogios, mas ele rouba a cena em todos os momentos em que ele está presente. E outra: ele e Ingrid Guimarães tiveram uma conexão de mãe e filho muito bonita. Não parecia que esse era o primeiro trabalho dos dois juntos.
Agora, a grande protagonista mesmo é a fotografia do filme. Os enquadramentos e os cenários foram muito bem explorados e o fato de ter sido gravado no Amazonas deixa tudo mais bonito ainda. As cenas até ganhavam um novo ar só de estar em um ambiente tão lindo, com uma iluminação tão boa e com cores tão vivas.
Lentes boas, mas problemáticas passam batidas
Em alguns pontos da trama, o enredo beira ao problemático. Algo que incomoda, no início do filme, é a trajetória caricata que os protagonistas fazem até chegar à ecovila em que Cadu está.
Eles passam por muitos perrengues, como já diz no título, precisando decolar em um avião mais baratinho e apertadinho, além de pegar dois barcos e uma balça para chegar até o lugar. Tudo bem que o trajeto pode ser esse, mas, em uma comédia, é preciso ter muito cuidado para que a cena não transpareça de maneira pejorativa e caricata até demais.
Outro quesito que poderia ser melhor trabalhado no roteiro é em questão de como as comidas típicas do norte são apresentadas. E esse é o ponto principal da crítica.
A personagem de Ingrid Guimarães é claramente uma dondoca, ou pelo menos ela finge ser para manter as aparências. Por ser uma mulher que passou por altos e baixos e batalhou muito para chegar onde chegou, Paula demonstrar um certo desdém com a cultura alheia pode soar um pouco feio em relação a como a personagem foi escrita.
No final do filme, aparecem cenas em que a mulher é feita de chacota pelas amigas por não ter condições financeiras o suficiente para comprar vestidos de marcas de luxo. Alguém que, na infância, estava sendo "nivelada por baixo" - e que já até vendeu brigadeiro na escola para conseguir ir a um passeio de colégio - deveria ser mais receptiva em relação às comidas "diferentes".
E está tudo bem não gostar de um prato típico de um lugar que você acabou de conhecer, o problema está em como tudo foi roteirizado.
A cena em que Paula está provando comidas como tacacá ou açaí é o ponto mais problemático do filme. A narrativa toda mostra como a mulher consome apenas "tudo do bom e do melhor", e o descaso que ela faz com o almoço preparado para ela dá a entender que aquilo nunca vai ser bom, muito menos o melhor.
Quando se trata de cultura, não dá para fazer comédia sem passar a régua do que pode e o que não pode soar bem. Não é o mesmo que ela comer uma abóbora e odiar o gosto, deixando uma cena cômica, porque ela já previamente não gostava. O vegetal, em si, é apenas um ingrediente.
Mas, quando ela prova e odeia tacacá, e é mostrado no filme que as únicas pessoas que gostam daquele tipo de comida são os que ela julgava como "sujos", "que não trabalham", "que vivem no mato", qual é a mensagem que vai passar? A arte é sujeita a interpretações, mas algumas interpretações são responsabilidade de quem cria a arte.
E a mensagem passada é muito importante em um filme, por mais besteirol que ele seja. Não é que não se pode trazer alívios cômicos em questões culturais, mas é necessário que tudo seja milimetricamente pensado e analisado antes de finalizar um filme que chegará em todas as outras culturas.
Em contrapartida, o longa-metragem teve um olhar muito mais sensível e respeitoso em relação aos povos indígenas e sobre a preservação do Amazonas. Existe uma cena na qual um ritual indígena é mostrado, como uma forma dos personagens se conhecerem e perceberem coisas que nunca perceberam sobre eles mesmos. Ponto positivo é que o elenco dessa cena eram todos compostos por indígenas e não se tem a "caracterização de Carnaval" que já é esperado nesse tipo de comédia.
No fim, com algumas ressalvas, "Perrengue Fashion" passa uma ótima mensagem sobre à era do consumismo que o século XXI está passando.
A personagem de Ingrid Guimarães passa por um bom desenvolvimento, apesar de ser preciso que o filho fizesse a campanha com ela para ela começar a respeitar de verdade a comunidade em que ele estava inserido. Paula Pratta acaba se tornando uma grande entusiasta do meio ambiente e do consumo sustentável. Eba!
É um filme legal de se assistir, porque, apesar de tudo e das questões que passaram batido, diverte e consegue mostrar que não é preciso piadas datadas ou constantes diálogos sobre trends e memes de redes sociais para ser engraçado.