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Desacelere e se reconecte: cerâmicas antenasais como resgate do eu paciente do ser humano

A procura por cerâmicas artesanais tem crescido no Recife e, além das peças, a recompensa é perceber que o trabalho à mão sempre será mais prazeroso

Por Alice Lins Publicado em 18/10/2025 às 7:10

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O barro possui a capacidade de ganhar vida nas mãos de quem sabe entender os princípios dele. A cerâmica artesanal, antes confinada a ateliês escondidos ou lembranças de tradições familiares, ressurge com força no cotidiano urbano, ocupando feiras, galerias e oficinas pelo país. Cada peça carrega o tempo e a paciência de quem a molda, transformando simples materiais em objetos que dialogam com a memória, a arte e a identidade de quem os cria.

Sendo mais que uma atividade manual, a cerâmica artesanal revela um movimento de valorização do feito à mão, do único e do imperfeito que se torna perfeito. Em um mundo acelerado e digital, as peças artesanais se tornam refúgios de sensibilidade, convidando o público a tocar, contemplar e se conectar com processos que respeitam ritmo, história e cultura.

Entre mestres que passam técnicas de geração em geração e jovens artistas que reinventam o ofício, a cerâmica artesanal se consolida como expressão artística e economia criativa, celebrando tradição e inovação. É o caso de Andréa Freire, que, agora aos 31 anos, é dona do ateliê recifense “Palma da Mão” desde os 26.

Nascendo em um quarto de apartamento, em dezembro de 2020, o ateliê surgiu da ideia de que a palma da mão é onde o barro repousa e onde a criação começa. Aberto em um estúdio físico desde abril de 2024, “Palma da Mão” é um lembrete vivo de que o artesanal sempre será humano, próximo, feito de tempo, de muito cuidado e afeto.

Andréa Freire/Arquivo pessoal
Aulas de cerâmica no estúdio Palma da Mão - Andréa Freire/Arquivo pessoal

“No ateliê, as mãos estão em tudo: desde a preparação da argila, reciclagem e modelagem até a queima das peças. É um processo do qual nos orgulhamos, porque preserva a essência artesanal em cada etapa. A palma também remete a identidade, ao toque que deixa uma marca única em cada peça. Mesmo quando sigo o mesmo processo, nenhuma criação sai idêntica, porque existe o tempo do barro, o diálogo com a matéria”, explica Andréa.

Buscando valorizar o artesanal em um mundo cada vez mais acelerado e marcado fortemente pelo produto industrial, o público tem procurado atividades para desassociar do ritmo apressado do cotidiano. A artista conta que o ateliê acaba se tornando um espaço para aquela respiração descompassada voltar a normalizar.

“Muita gente chega buscando um espaço para respirar, desacelerar e se reconectar. Existe uma carência por experiências que nos tirem do automático, e a cerâmica oferece exatamente isso: presença. Não é só sobre o objeto pronto, mas sobre a experiência de colocar as mãos no barro e encontrar outro ritmo”, ressalta.

O resultado é o seguinte: a busca por presença e significado se conecta diretamente com a valorização do trabalho manual. O barro, quando colocado na frente de um indivíduo, acaba não sendo somente um objeto de criação, mas um método de instigar o processo paciente, desafiando o criador em relação à rapidez do mundo moderno. A conexão com o próprio ritmo é o que torna o trabalho mais interessante e diferenciado.

“Há uma conscientização crescente sobre o valor do manual. É claro que hoje existem máquinas que tentam reproduzir o artesanal, e isso também acontece com a cerâmica. Mas vivemos em uma cidade que ainda valoriza muito a cultura feita à mão. O ‘Palma da Mão’ se coloca nesse lugar contracultural, não só vendendo peças, mas também ensinando alunos e oferecendo serviço de queima para que outros artistas consigam espalhar a arte da cerâmica”, diz.

Andréa Freire/Arquivo pessoal
Aulas de cerâmica no estúdio Palma da Mão - Andréa Freire/Arquivo pessoal

O público do Recife costuma valorizar a cultura e a arte feita à mão, tornando a experiência de criar um ateliê artístico muito mais prazeroso aos que buscam aquilo. A cerâmica, como forma de arte, fortalece esse movimento de que peças únicas sempre serão mais significativas e próximas àqueles que a possuem.

“Vejo pessoas que antes só consumiam objetos industrializados agora buscando peças únicas, que contam histórias. Recife tem uma energia criativa muito forte, e a cerâmica está se fortalecendo dentro desse movimento. Ela aparece no cotidiano, em canecas, pratos, vasos, mas também como arte. Isso mostra que as pessoas estão entendendo a cerâmica não apenas como objeto, mas como uma escolha de vida mais consciente. Nas redes sociais também percebo muita gente procurando hobbies e encontrando na cerâmica uma forma de se expressar e se conectar”, celebra Andréa.

E o processo criativo das peças é em um formato de diálogo, segundo a dona do ateliê. Ela afirma que a maioria das peças surge da experimentação: a mão é quem conversa com a argila. A partir daí, caminhos inesperados surgem e é nesse encontro entre o planejado e o espontâneo que torna cada peça única e com muita personalidade.

Muitas vezes, as pessoas chegam tímidas, querendo aprender algo novo. Segundo Andréa, são essas pessoas que acabam encontrando no barro um espaço de cura, de autoconfiança, e até de reencontro com a própria criatividade. Algumas transformaram esse processo em profissão, outras usam para atravessar momentos difíceis. E, no final, o barro acaba ensinando muito sobre paciência e sobre recomeçar.

Andréa Freire/Arquivo pessoal
"Palma da Mão" é um lembrete vivo de que o artesanal sempre será humano - Andréa Freire/Arquivo pessoal

“A cerâmica artesanal valoriza o tempo, a imperfeição, a singularidade. Não precisamos ter objetos iguais: podemos escolher peças que carregam histórias e alma. Nesse sentido, acredito que a cerâmica também é um ato político, porque escolher o artesanal é escolher valorizar o humano”, conclui Andréa.

Apesar de não parecer, o artesanal pode não ser somente a criação de uma peça, mas a personalização também conta como um processo criativo. Foi nessa pegada que surgiu o Sketch Studio, em março deste ano. Inspirada em experiências que tiveram fora do país, Eduarda Lopes, de 33 anos, e a mãe, Nely Carneiro, de 61, decidiram empreender com essa ideia. Desde então, o estúdio funciona como uma prática imersiva de pintura em cerâmica e em telas.

“O foco do nosso espaço é justamente mostrar que não é necessário ter uma técnica específica para se envolver com a cerâmica. Não somos artistas plásticas profissionais, mas acreditamos que, por meio dessa pintura e dessa arte, é possível criar um tempo para se desconectar, experimentar um hobby novo e vivenciar momentos de introspecção. Além disso, é também uma oportunidade ter um momento com você mesmo, com a família, com o namorado, ou com as amigas”, explica Eduarda.

Ela diz que cerca de 90% das pessoas que foram no local não eram profissionais e aquele seria o primeiro contato com a pintura. Por não ser voltado para o formato de curso, as pessoas se sentem mais livres para personalizarem as peças como quiserem. O medo de se arriscar em algo novo acaba se transformando em um momento de ser livre. E, na mesma intenção que as outras aulas de cerâmica, um dos focos principais do Sketch é fazer com que a pessoa concentre-se em algo fora do virtual.

Divulgação
Aulas de pintura em cerâmica do Studio Sketch - Divulgação

“A gente vive na frente de tela o tempo todo, as crianças também. Lá no estúdio, a gente proporciona esse momento longe da tela virtual. E aí conseguimos realmente entreter crianças de 7, 8 anos por cerca de duas horas em uma atividade em que elas se concentram, trabalham coordenação, criatividade e atenção. É algo que precisamos muito hoje em dia, porque nosso hobby muitas vezes se resume a ver Instagram ou vídeos no TikTok. Precisamos de algo que nos desconecte do mundo para nos concentrar”, afirma.

Essa vivência mais livre permite que cada participante experimente o processo de criação sem a pressão de regras rígidas ou técnicas avançadas. É justamente essa liberdade que transforma o ato de pintar ou modelar em um momento de autodescoberta e presença, em que o foco não está no resultado, mas na experiência de se conectar consigo mesmo.

“Durante aquelas duas horas de cerâmica, ou aquela horinha de pintura, a pessoa tenta algo novo, se descobre, percebe o que consegue ou não fazer. Acho que esse é um ponto muito importante atualmente: se desligar, se desconectar e experimentar algo novo”, ressalta.

A liberdade de experimentação dos ateliês acaba criando um espaço inclusivo, no qual cada pessoa pode explorar o próprio ritmo, as emoções e a criatividade sem julgamentos. Dessa forma, se torna um refúgio do cotidiano acelerado, permitindo que os participantes vivenciem o prazer de criar com autenticidade e atenção plena.

“Nosso público é bastante diversificado. Um dos aspectos que mais chama atenção são as sessões de pessoas autistas, muitas vezes adolescentes, que vêm acompanhados de terapeutas. Nessas sessões, o profissional consegue direcionar a atividade para atender às necessidades específicas do paciente, aproveitando a vivência artística tanto de forma lúdica quanto terapêutica, trabalhando concentração e convivência”, esclarece Eduarda.

Divulgação
Aulas de pintura em cerâmica do Studio Sketch - Divulgação

O ambiente acolhedor oferece a interação ao mesmo tempo em que se tem a troca entre os participantes. A experiência consegue ir além da atividade artística em si. Se torna uma oportunidade de observar as diferentes formas de expressão, percebendo que cada trajetória de criação é única, independente de quem se é, fortalecendo o senso de comunidade.

“Uma das transformações mais significativas que observamos é justamente nessas sessões terapêuticas. Os adolescentes participam da vivência artística e também da experiência comunitária, já que nossas sessões são compartilhadas. Eles vivenciam todo o processo: desde o pagamento até a realização da atividade, aprendendo a lidar com a rotina e com a convivência em grupo”, conclui.

O processo é bonito na teoria e, principalmente, na prática. Estúdios que promovem as práticas manuais e artesanais se transformam em espaços de trocas, de ressignificação, de entender o coletivo, de entender a si, de parar de se colocar em uma posição de que não é capaz e perceber que pode se ter um passatempo em qualquer ocasião.

Isso é um convite para desacelerar, descobrir e redescobrir habilidades, fortificar ou criar novos laços e, acima de tudo, mostrar que a arte pode ser uma experiência de vida.

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