Zika e microcefalia: uma década depois, Pernambuco relembra o pioneirismo e alerta para novas epidemias
Investigação da relação causal entre zicavírus e malformações congênitas em recém-nascidos revolucionou a ciência e a saúde pública
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Dez anos após o surto de zicavírus que culminou em um aumento abrupto de casos de microcefalia em recém-nascidos, o Brasil, e em particular Pernambuco, revisita um dos episódios mais marcantes da história recente da saúde pública. A relação entre a infecção materna e as malformações congênitas mudou completamente a compreensão científica sobre o vírus e colocou o estado de Pernambuco como epicentro e pioneiro em toda a investigação.
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Em um debate que reuniu o Dr. Carlos Brito (médico, pesquisador e professor da UFPE), a Dra. Adélia Henriques (médica neurologista infantil) e Cíntia Leite (jornalista da coluna Saúde e Bem-Estar do Jornal do Commercio), a complexidade da crise e os aprendizados da saúde pública foram dissecados
Pernambuco: o epicentro da crise e o desafio inicial de reconhecimento da zica
No início de 2015, quando os primeiros casos de crianças nascidas com o tamanho da cabeça menor do que o esperado começaram a ser noticiados, o conhecimento científico sobre o fenômeno era nulo. A situação era complicada pelo fato de os casos de Zika estarem sendo notificados oficialmente como dengue, o que impedia o reconhecimento formal da nova arbovirose.
A jornalista Cíntia Leite lembra que a informação inicial sobre o aumento dos casos de microcefalia chegou através de um grupo de médicos no WhatsApp. Inicialmente, a equipe de redação do Jornal do Comércio pensou que poderia ser fake news (notícia falsa), visto que pesquisas em plataformas científicas de grande evidência, como a Pubmed, não retornavam informações sobre a microcefalia em tal contexto.
Apesar do ceticismo inicial e da desconfiança que acometeu a imprensa, a investigação seguiu adiante, baseada em entrevistas com grandes médicos. Em Pernambuco, o número de ocorrências saltou de uma média anual de 8 a 10 casos para 16 crianças internadas em uma única unidade, o IMIP, em apenas uma semana.
Microcefalia e zica: como a ciência montou o quebra-cabeça epidemiológico
O aumento exponencial dos casos de microcefalia chamou a atenção dos especialistas. A Dra. Adélia Henriques, que já lidava com microcefalia em sua rotina, percebeu que a quantidade de casos era "absurda" em comparação com as ocorrências anuais esperadas, que antes eram contadas nos dedos.
O Dr. Carlos Brito, que sempre trabalhou com surtos e doenças infecciosas, incluindo neuroarboviroses, liderou a investigação clínica. A hipótese inicial considerava causas mais comuns de microcefalia congênita, como toxoplasmose, sífilis e rubéola, mas essas foram sendo afastadas.
A chave para o raciocínio epidemiológico veio ao coletar o histórico das mães afetadas. O Dr. Brito percebeu dois fatores cruciais:
- Transmissão por Vetor: Os casos não tinham proximidade e as mães moravam em cidades completamente diferentes, em curto espaço de tempo. Isso sugeriu que o contágio não se dava por contato direto (como rubéola ou sífilis), mas sim por um vetor (mosquito).
- Manifestação Clínica: Cerca de 70% das mães relataram ter tido, no início da gravidez, manchas vermelhas na pele que coçavam e inchavam, sem febre ou dor articular. Essa manifestação havia sido observada na epidemia de Zica em adultos meses antes.
Com a hipótese clínica e epidemiológica da Zica levantada em Pernambuco, o processo foi acelerado. O Dr. Brito comunicou a hipótese a colegas de outros estados, como Cléber Luiz no Rio Grande do Norte, que confirmou ter a mesma impressão clínica com oito casos em sua região.
A confirmação científica definitiva, necessária para isolar o vírus, ocorreu em novembro de 2015. Visto que a gestação já havia avançado e o vírus não era mais detectável no líquido da coluna das crianças, a médica Adriana Melo teve a ideia de puncionar o líquido amniótico de gestantes com bebês já com alteração cerebral. O vírus foi isolado pela Fiocruz e o resultado foi comunicado em 5 de novembro, marcando a confirmação da relação Zica e Microcefalia.
A Síndrome congênita do zica e o futuro das crianças afetadas
A síndrome Zica congênita (SCZ) está hoje muito bem definida. As crianças são severamente comprometidas do ponto de vista neurológico, pois o vírus possui um "neurotropismo enorme", ou seja, uma grande afinidade pelo sistema nervoso, que é seu principal alvo. As vítimas frequentemente enfrentam limitações graves, como necessidade de gastrostomia (para alimentação), traqueostomia (para respiração), múltiplas internações e luxações de quadril.
O sofrimento dessas mães, muitas delas "mães solo" e vivendo em condições precárias, foi angustiante para os profissionais de saúde. Dr. Carlos Brito lembra do sofrimento ao ser questionado pelas mães sobre o futuro dos filhos.
Embora a atenção tenha se voltado para a microcefalia, o impacto do Zica não se encerra na síndrome congênita. Pesquisas atuais investigam crianças expostas ao Zica na gravidez, mas que não nasceram com a SCZ, buscando identificar possíveis transtornos de comportamento, autismo e transtorno do déficit de atenção (TDAH) ao longo do tempo.
Em relação ao suporte social, o benefício de pensão vitalícia (BPC), que foi objeto de resistência em 2019, foi finalmente concedido, embora muitos defendam que é insuficiente para cobrir todos os tratamentos e terapias necessárias.
Memória curta e o risco de novas epidemias de arboviroses no Brasil
Passados 10 anos, a incidência de novos casos de Zica diminuiu drasticamente, levando a fake news de que o caso teria sido localizado ou uma invenção. No entanto, a ciência explica que as epidemias virão, e o Brasil tem uma "memória muito falha".
Estudos de soroprevalência mostraram que 45% a 50% da população de Pernambuco ainda está suscetível ao Zica, o que significa que novos surtos vão acontecer.
O Dr. Carlos Brito alerta que as arboviroses (Dengue, Zica, Chicungunha) continuam sendo um problema grave e devem fazer parte das hipóteses diagnósticas dos médicos. O Brasil recentemente bateu o recorde de casos de Dengue, evidenciando que o vetor (o mosquito Aedes aegypti) está ganhando a batalha.
A solução fundamental para evitar futuras epidemias não se limita às vacinas, mas passa pelo investimento em saneamento básico e em melhores condições de vida para a população, que são essenciais para eliminar o vetor. A jornalista Cíntia Leite reforça que o trabalho de vigilância não pode parar, pois a qualquer momento o padrão das arboviroses pode fugir do controle, como aconteceu com o Zica.
A jornada da investigação do Zica e da Microcefalia em Pernambuco pode ser comparada a montar um quebra-cabeça gigante no meio de uma tempestade: os cientistas tiveram que usar evidências clínicas e epidemiológicas fragmentadas — como o relato de uma mancha na pele ou o número repentino de nascimentos — para ligar peças que jamais haviam sido conectadas, garantindo que o mundo reagisse a uma crise de saúde pública antes que a tragédia se alastrasse ainda mais.
*Texto gerado com auxílio da IA a partir de uma fonte autoral da Rádio Jornal